(IMAGEM RETIRADA DAQUI - SIMONE DE BEAUVOIR E JEAN-PAUL SARTRE)
Está uma límpida manhã de
outono, são oito horas e já o raiar dourado do sol cobre as terras cortilhadas
de orvalho, ante este cenário o meu pensamento escorre para A Cerimónia do
Adeus, de Simone de Beauvoir.
Por regra, livro algum, uma vez
terminada a sua leitura, me leva no imediato a escrever, e muito menos me leva
a tecer anotações em folha, mas as regras, quando nossas têm esse condão de
quebra, que leva a um espraiar de limites e horizontes. O que irei aqui dedilhar
não constitui uma crítica, nem a Simone de Beauvoir, nem ao resultado da sua
pena, que em bom rigor da verdade pouco conheço, deixá-la-ei para os
profissionais que sugam até ao tutano a existência das linhas.
É certo que um Adeus não é fácil,
seja ele esperado ou não, mas a sua letalidade deixa sempre marcas e cabe a
cada um traçar o rumo da sua cicatrização. Simone no prefácio do livro escreve:
“É uma coisa que não se pode dizer, que
não se pode escrever, que não se pode pensar; é uma coisa que se vive e é tudo.”.
Mas esse tudo é ao fim das contas um nada. Um nada que preenche um todo, ou por
outro lado, preenche um vazio que é um todo.
Este livro no qual se traduzem
os últimos dez anos de vida de Sartre, á lupa de Simone, demorou mais de dois
meses a ser lido, e tem apenas 252 páginas… mas não foi o gosto ou o desgosto
das suas folhas que alongaram a sua leitura, antes foi a minha disposição para
ele e confesso que o excesso de detalhes históricos prolongou o seu término,
talqualmente, como a ausência de uma Simone física feita de carne, nervos e
ossos. O que encontrei foi uma intelectual refugiada na razão, ausente de si e
totalmente ansiosa pela tragédia de um adeus, que sabia ser antes de tudo o
demais, preenchido por sentidos.
O intelectual sofre acima de
tudo. Há nele um nervosismo inato e um constante apego e desapego do corpo. Um
apego porque é este que lhe pode garantir uma labuta continua, uma imortalidade
instantânea, mas o desapego é-lhe necessário porque é na razão que ele se encontra
e apreende, e o corpo atrapalha-o. E foi este fatalismo que encontrei na pena
de Simone, um Sartre até 1970 livre, desimpedido de corpo que percorreu até ao
excesso toda a fervura do seu intelectualismo, e um outro que a partir da
década de setenta até há de oitenta ficou encarcerado nas suas maleitas. A
degradação do homem físico é inevitável, mas o intelectual não o aceita. Por
isso A Cerimónia do Adeus, não é um adeus a Sartre é um adeus ao intelectual
que foi e que o corpo não permitiu continuar a ser na sua óptica acutilada.
Não é Sartre quem mais sofre com
as suas privações físicas, e por conseguinte, com a sua degradação, mas sim
Simone, porque o seu apego nunca foi ao Sartre físico, ao Sartre homem, foi
sempre e até final ao Sartre intelectual. E como é que se diz adeus ao génio
quando o homem ainda vive? Como é que vivemos nos outros, o que é igualmente o
nosso fim?
Por isso escreve Simone no seu
diário em 1970, “ Este estúdio, tão
alegre desde o meu regresso, mudou de cor. A
bela alcatifa cor de rato lembra um luto. É assim que será preciso
viver, no melhor dos casos, ainda com felicidade e alguns momentos de alegria,
mas com a ameaça suspensa sobre nós, com a vida posta entre parênteses.” E é
aqui que começa a longa cerimónia do adeus de Simone, mas o Sartre homem viveu
por mais 10 anos.
E coloca-se a questão, a quem
serviu esta cerimónia? A quem serviu este luto antecipado? A Simone? A Sartre? Ao
intelectual? De todo o modo, esta cerimónia não é um adeus a Sartre, Homem no seu
todo, mas um adeus à ambiguidade da esperança e do infortúnio da
intelectualidade.