(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG.)
“Como toda a gente, só
disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós
próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos
métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para
nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros,
com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. Li
quase tudo quanto os nossos historiadores, os nossos poetas e mesmo os nossos
narradores escreveram, apesar de estes últimos serem considerados frívolos, e
devo-lhes talvez mais informações do que as que recebi das situações bastante
variadas da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz
humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a
apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me
compreender os livros.
Mas
estes mentem, mesmo os mais sinceros. Os menos hábeis, por falta de palavras e
de frases onde possam abrangê-la, traçam da vida uma imagem trivial e pobre;
alguns, como Lucano, tornam-na mais pesada e obstruída com uma solenidade que
ela não tem. Outros, pelo contrário, como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela
uma bola saltitante e vazia, fácil de receber e de atirar num universo sem peso.
Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou
mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo diferente e praticamente
quase inabitável. Os filósofos, para poderem estudar a realidade pura,
submetem-na quase às mesmas transformações a que o fogo ou o pilão submetem os
corpos: coisa alguma de um ser ou de um facto, tal como nós o conhecemos,
parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores
apresentam-nos, do passado, sistemas excessivamente completos, séries de causas
e efeitos exactos e claros de mais para terem sido alguma vez inteiramente
verdadeiros; dispõem de novo esta dócil matéria morta, e eu sei que Alexandre
escapará sempre mesmo a Plutarco. Os narradores, os autores de fábulas
milésias, não fazem mais, como os carniceiros, que pendurar no açougue pequenos
bocados de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia muito mal a um mundo
sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.” - Marguerite
Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'.
Justamente
hoje procurava num dos meus livros um sentido para análise, dispersa-se sempre
na azáfama do quotidiano, no entanto, como dizem os italianos “cerca, trova”,
e ao fim e ao cabo tudo se interliga.
Fechada
no meio dos Diários de Al Berto estava uma frase de Marguerite Yourcenar do
Livro Memórias de Adriano, “A vida, tal
como a vivemos, não é um momento de repouso.”. A frase fez soar
campainhas, de tal modo que, dei por mim a relembrar essa obra essencial de
Youcenar, lida há já largos anos, numa altura em que se me assolou uma febre
sobre Adriano, ainda hoje ele é para mim o melhor imperador romano. No entanto,
a distância que escoa entre o momento em que mergulhei nas Memórias e o dia de
hoje, permitiu-me um distanciamento desapaixonado, essa é talvez a melhor
vantagem da passagem do tempo, a desassociação dos sentidos dos factos. Essa é
também, a argamassa com que se consolida a experiência e se preenche a espinha
dorsal dos homens.
Ora
tudo isto, a conjugação das campainhas que me levaram às ideias e das ideias
aos livros, fez-me pensar na realidade, aquela que supostamente acontece e
existe no plano do físico. Porque, em rigor, é nesse plano que se manifesta
tudo o resto, a vida não acontece nas linhas de um livro ou no balbucio de uma
ideia. Mas será a manifestação em massa corpórea a realidade?
Vejamos,
a dissociação dos sentidos dos factos, o distanciamento dos acontecimentos e o
uso da razão permito-nos formular uma tese, a vivência dos factos em conjugação
com a experiência adquirida, permitir-nos-á formular outra. Mas, entre duas
teses possíveis de formular qual será a que contém a realidade?
Poder-se-ia
discursar infinitamente sobre o assunto, e em cada discurso cairíamos,
retumbantemente na utopia, e isto porque a realidade, pese embora seja um
conceito universal, é assimilada pelo homem á luz do seu eu. Daí que, a
realidade no homem possa assumir diversas formas, dependendo do modo como esta
lhe advém, se através de método directo, ou seja, através da vivência e por
meio da experiência, ou, por método indirecto, através de outros homens, quer
seja por análise que a eles faça, ou que veja reproduzido em livro. Adriano
pela pena de Marguerite Yourcenar, manifesta que, para o homem em concreto,
realidade alguma existe condensada num só método, é necessário pois que todos
se considerem, isso mesmo, transportam as linhas finais do texto supra
transcrito: “Adaptar-me-ia
muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não
contêm inteira.”.