9 de dezembro de 2013

NOTAS DE AUTOGNOSE


(JOAQUIM VALÉRIO -IMAGEM DO ACERVO PESSOAL DA GESTORA DO BLOG)


São duas da manhã, lá fora silenciam-se os ruídos amorfos de um início de madrugada. Sabemos que a cidade e vida não dorme, apenas se apazigua em alguns nervos. É neste silêncio ilusório que se aquietam as ideias frenéticas das quotidianas correrias, dos mil e um afazeres com que entupimos a vida. Na memória viva e quente ressoa um certo olhar contemplativo, singelo, tão nu que qualquer um sente que ele nada tem, e, no entanto, nele sossegadamente tudo se completa. Nada há a esconder, nada há a procurar, apenas há essa comunhão indescritível de estar-se no mesmo horizonte onde se esteve uma vida inteira.

O olhar é do meu avô, é um azul límpido que encontro num dia da minha infância onde ele carinhosamente me guiou pelas entranhas da sua arte, como reduto de uma existência vivida. Contemplava o mesmo campo onde durante uma vida inteira tinha pastado as suas cabras, dia após dia sem busca ou demanda. Era um homem simples, que não sabia ler, nem escrever e que só muitos anos mais tarde, quase no fim da sua vida, me revelou que sabia esculpir o seu nome, e não mais que isso, porque afinal o mundo das letras para mais nada lhe servia.

Como é curioso o espírito humano, assim de repente vinda do nada, aconchega-se uma fotografia há tanto tempo perdida, voltam à memória os sons, os cheiros e as imagens de um tempo tão longinco que duvidamos que tenha existido, e, no entanto, as suas impressões digitais são tão perenes, como as das mãos que esmagam as teclas com que agora escrevo.

De um outro baú, assola-me a imagem do meu pai, muito diferente da do meu avô, pese embora seja seu filho e conheça os seus horizontes melhor que eu. O meu pai, também ele um homem simples, procura não exigir muito da vida, tal como o meu avô também ele reserva para si o sentido das coisas, difere dele, entre tantos outros pontos, pela incapacidade de traduzir os sentimentos, nesse campo embora saiba ler e escrever, não lhe arrancamos uma só palavra, nele a herança materna cinzelou um maior número de genes.

O meu avô conhecia a face simples dos sentimentos, espelhava-a num sorriso impar, que nunca mais encontrei… embora muitos sejam os rostos com que me deparo ao longo da vida. Mas a humildade daquele sorriso, espelhada numa aceitação tão própria, nunca mais a encontrei. A grandeza do sorriso do meu avô residiu sempre, no esculpido das suas rugas na abertura imediata do sentir e na nudez da carne que lhe revestia os ossos.

É nestes dois homens, pilares da minha existência, que encontro sem máscaras, sem espectativas desmesuradas, sem actos heróicos, ou demandas homéricas, a matéria do Homem.
Porque o Homem resume-se a isso, a um amontoado de alma, sentidos, carne, nervos e ossos, quere-lo diferente é agir contra natura.