(JOAQUIM VALÉRIO -IMAGEM DO ACERVO PESSOAL DA GESTORA DO BLOG)
São duas da
manhã, lá fora silenciam-se os ruídos amorfos de um início de madrugada.
Sabemos que a cidade e vida não dorme, apenas se apazigua em alguns nervos. É
neste silêncio ilusório que se aquietam as ideias frenéticas das quotidianas correrias,
dos mil e um afazeres com que entupimos a vida. Na memória viva e quente ressoa
um certo olhar contemplativo, singelo, tão nu que qualquer um sente que ele
nada tem, e, no entanto, nele sossegadamente tudo se completa. Nada há a
esconder, nada há a procurar, apenas há essa comunhão indescritível de estar-se
no mesmo horizonte onde se esteve uma vida inteira.
O olhar é do
meu avô, é um azul límpido que encontro num dia da minha infância onde ele
carinhosamente me guiou pelas entranhas da sua arte, como reduto de uma existência
vivida. Contemplava o mesmo campo onde durante uma vida inteira tinha pastado
as suas cabras, dia após dia sem busca ou demanda. Era um homem simples, que
não sabia ler, nem escrever e que só muitos anos mais tarde, quase no fim da
sua vida, me revelou que sabia esculpir o seu nome, e não mais que isso, porque
afinal o mundo das letras para mais nada lhe servia.
Como é curioso
o espírito humano, assim de repente vinda do nada, aconchega-se uma fotografia
há tanto tempo perdida, voltam à memória os sons, os cheiros e as imagens de um
tempo tão longinco que duvidamos que tenha existido, e, no entanto, as suas
impressões digitais são tão perenes, como as das mãos que esmagam as teclas com
que agora escrevo.
De um outro
baú, assola-me a imagem do meu pai, muito diferente da do meu avô, pese embora
seja seu filho e conheça os seus horizontes melhor que eu. O meu pai, também
ele um homem simples, procura não exigir muito da vida, tal como o meu avô
também ele reserva para si o sentido das coisas, difere dele, entre tantos
outros pontos, pela incapacidade de traduzir os sentimentos, nesse campo embora
saiba ler e escrever, não lhe arrancamos uma só palavra, nele a herança materna
cinzelou um maior número de genes.
O meu avô
conhecia a face simples dos sentimentos, espelhava-a num sorriso impar, que
nunca mais encontrei… embora muitos sejam os rostos com que me deparo ao longo
da vida. Mas a humildade daquele sorriso, espelhada numa aceitação tão própria,
nunca mais a encontrei. A grandeza do sorriso do meu avô residiu sempre, no
esculpido das suas rugas na abertura imediata do sentir e na nudez da carne que
lhe revestia os ossos.
É nestes dois
homens, pilares da minha existência, que encontro sem máscaras, sem
espectativas desmesuradas, sem actos heróicos, ou demandas homéricas, a matéria
do Homem.
Porque o Homem
resume-se a isso, a um amontoado de alma, sentidos, carne, nervos e ossos,
quere-lo diferente é agir contra natura.