9 de outubro de 2015

A CERIMÓNIA DO ADEUS

(IMAGEM RETIRADA DAQUI - SIMONE DE BEAUVOIR E JEAN-PAUL SARTRE)

Está uma límpida manhã de outono, são oito horas e já o raiar dourado do sol cobre as terras cortilhadas de orvalho, ante este cenário o meu pensamento escorre para A Cerimónia do Adeus, de Simone de Beauvoir.

Por regra, livro algum, uma vez terminada a sua leitura, me leva no imediato a escrever, e muito menos me leva a tecer anotações em folha, mas as regras, quando nossas têm esse condão de quebra, que leva a um espraiar de limites e horizontes. O que irei aqui dedilhar não constitui uma crítica, nem a Simone de Beauvoir, nem ao resultado da sua pena, que em bom rigor da verdade pouco conheço, deixá-la-ei para os profissionais que sugam até ao tutano a existência das linhas.

É certo que um Adeus não é fácil, seja ele esperado ou não, mas a sua letalidade deixa sempre marcas e cabe a cada um traçar o rumo da sua cicatrização. Simone no prefácio do livro escreve: “É uma coisa que não se pode dizer, que não se pode escrever, que não se pode pensar; é uma coisa que se vive e é tudo.”. Mas esse tudo é ao fim das contas um nada. Um nada que preenche um todo, ou por outro lado, preenche um vazio que é um todo.

Este livro no qual se traduzem os últimos dez anos de vida de Sartre, á lupa de Simone, demorou mais de dois meses a ser lido, e tem apenas 252 páginas… mas não foi o gosto ou o desgosto das suas folhas que alongaram a sua leitura, antes foi a minha disposição para ele e confesso que o excesso de detalhes históricos prolongou o seu término, talqualmente, como a ausência de uma Simone física feita de carne, nervos e ossos. O que encontrei foi uma intelectual refugiada na razão, ausente de si e totalmente ansiosa pela tragédia de um adeus, que sabia ser antes de tudo o demais, preenchido por sentidos.

O intelectual sofre acima de tudo. Há nele um nervosismo inato e um constante apego e desapego do corpo. Um apego porque é este que lhe pode garantir uma labuta continua, uma imortalidade instantânea, mas o desapego é-lhe necessário porque é na razão que ele se encontra e apreende, e o corpo atrapalha-o. E foi este fatalismo que encontrei na pena de Simone, um Sartre até 1970 livre, desimpedido de corpo que percorreu até ao excesso toda a fervura do seu intelectualismo, e um outro que a partir da década de setenta até há de oitenta ficou encarcerado nas suas maleitas. A degradação do homem físico é inevitável, mas o intelectual não o aceita. Por isso A Cerimónia do Adeus, não é um adeus a Sartre é um adeus ao intelectual que foi e que o corpo não permitiu continuar a ser na sua óptica acutilada.

Não é Sartre quem mais sofre com as suas privações físicas, e por conseguinte, com a sua degradação, mas sim Simone, porque o seu apego nunca foi ao Sartre físico, ao Sartre homem, foi sempre e até final ao Sartre intelectual. E como é que se diz adeus ao génio quando o homem ainda vive? Como é que vivemos nos outros, o que é igualmente o nosso fim?

Por isso escreve Simone no seu diário em 1970, “ Este estúdio, tão alegre desde o meu regresso, mudou de cor. A bela alcatifa cor de rato lembra um luto. É assim que será preciso viver, no melhor dos casos, ainda com felicidade e alguns momentos de alegria, mas com a ameaça suspensa sobre nós, com a vida posta entre parênteses.” E é aqui que começa a longa cerimónia do adeus de Simone, mas o Sartre homem viveu por mais 10 anos.

E coloca-se a questão, a quem serviu esta cerimónia? A quem serviu este luto antecipado? A Simone? A Sartre? Ao intelectual? De todo o modo, esta cerimónia não é um adeus a Sartre, Homem no seu todo, mas um adeus à ambiguidade da esperança e do infortúnio da intelectualidade.