18 de março de 2012

PLURAL COMO O UNIVERSO

(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG EM 10/03/2012  - EXPOSIÇÃO FERNANDO PESSOA: PLURAL COMO O UNIVERSO - FUNDAÇÃO CALOUSE GULBENKIAN)



Cansada do trabalho e de alguma monotonia dos dias, fui desafiada por um grande amigo a espairecer, é que venhamos e convenhamos, no dia-a-dia da vida esquecemo-nos de tanta coisa importante! Assim, caminhámos os dois entre cumplicidades até à Gulbenkian para “bisbilhotar” Pessoa.

O título escolhido para a exposição foi de facto muito bem concebido: Fernando Pessoa Plural como o Universo.

Não existe um escritor tão plural e ao mesmo tempo tão singular como Fernando Pessoa. Não vou entrar pelos meandros dos seus heterónimos, ou, pela singularidade da sua escrita, isso seria devassar a genialidade de um Homem com alma de Universo.

Ao transeunte, recomendo a exposição que é muito visual é extremamente sensorial, contudo, não reúne o melhor de Fernando Pessoa, nem explora toda a sua pluralidade, mas permite um mergulho na escrita poética do escritor, pecando por não trazer aos olhos do público a globalidade da sua escrita.

Por fim, partilho um trecho de um dos meus textos favoritos de Pessoa.

Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas acções - ridiculamente humanas às vezes - que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.
Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
E é por isso que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.”

Notas Autobiográficas e de Autognose


9 de março de 2012

LÉMURES

(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG - GRANADA ANO DE 2007)


Outra e outra vez o som da tua voz… estou cansada. São cinco horas da manhã e eu estou cansada! Mas o som da tua voz retorna, penetra-me nas artérias ressequidas, sai da caixa bolorenta onde o deixei e invade-me a casa inteira. Porquê?
Dizem que os lémures são como os abutres, mal se lhes dá o cheiro da morte anunciada, rondam os corpos à espera do último suspiro para o banquete. Bons deuses! Porque não começa esse banquete?
Mas o som da tua voz regressa… desconfio já deste dessossego velho, que nem trás a morte anunciada, nem aos deuses leva as pobres suplicias desta alma cansada.

Rendo-me! Mais nada me resta… e lanço às Parcas as memórias turvas de um passado que me recuso a acreditar ter sido meu.

Caramba! Ao menos a essa liberdade tenho direito! Escrevam o que quiserem na ardósia da minha vida, mas nego-me a ceder-vos, a liberdade de acreditar nessa escrita!

Amor? Que amor? Desgaste, medo, infortúnio, chacina completa de todas as vértebras mas amor, nunca! A rendição será esperada pela hora da minha morte, nunca antes e nunca depois. E eu estou viva, tão viva! Que te escrevo hoje para lamento dos teus pesares e espanto dos meus fantasmas.

Ah! Mas eu não rezo aos deuses! Não vou nas mezinhas da avó e não cedo aos enlaces de cordel! É vida, é minha e no sangue espesso que me bombeia o coração cabe todo um sentir que não te pertence.

Falas, e eu forçada sou a ouvir o som da tua voz, mas esqueces-te que logo que principia a manhã, o som esvai-se e a vida penetra-me nessa paixão que só nós as duas partilhamos, e no novo dia meus passos erguem-se de encontro ao caminho.

Para trás fica o som da tua voz, o meu cansaço e a minha rendição, e na soma dos dias tudo não passou de uma batalha de peito às balas numa noite de sono sem guarda. Por hoje basta-me, sigo adiante.


8 de março de 2012

AO FIM DA TARDE

(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG)


Gastos pelo tempo, procuram nos outros a falta de ser.
Reviram, mudos, as entranhas na transposição de uma vida.
A porta! Sempre a porta. Mais um recorte na dobra do caminho.

Ao canto, umas farroupilhas para atavio do corpo.
Ah! Instante, luxúria, invídia e a mesa de jantar.
Imagens cruas atoladas de argamassa cobrem o entulho.

Mas é fim de tarde, de jorna e de encontro com as comadres.
Ledos enganos com que se acolhe o caminhar da noite.
Pilula com que se afulva o árido sono de abraços e contas.
 
 
Amanhã serão mais gastos, frágeis, sós, perdidos e vazios.
Mas que se cimente bem fundo no vão das memórias,
Será só num desses amanhãs prendidos ao acaso.

4 de março de 2012

DISPARIDADE


(IMAGEM RETIRADA DAQUI E EDITADA PELA GESTORA DO BLOG)


A vida discrimina mansamente a chagas que acolhes.
Os corvos pairam no tronco nu, seco ardil, áspera metamorfose
De um caminho que se queria simples, sem ventos nem tempestades,
Só passos e ecos de voz na sinonímia perfeita e intacta de ser e corpo.
Mas a vida não espera caminhos, não segue passos, não ouve vozes…
E ao fundo, no tremor de que o medo orne os senhores das trevas,
Ajoelhas-te em busca da salvação num deus que não conheces e negas-te.

Que querias tu deste fim? De que massa são feitos os teus ossos?