28 de julho de 2010

DIZEM-ME




Dizem-me, sou presente com armadura de passado.

Ah! Quem dera que a lógica simplista fosse assim, bucólica

Como o milhafre em vaga de horizonte.



Mas as vielas da vida contam outros andrajos.

A pele que nos cobre é sempre mais que a lisura do mármore

E os passos, certos ou errados, nunca são iguais.



Dizem-me, o coração vive de lógicas matemáticas.

Como se ele não fosse arritmia e bombear,

Mas relógio servo e coloquial.



Podem-me podar as verdades á laia de verdade maior.

Podem me toldar os pensamentos à força de um pensamento maior.

Mas no coração não me bolem, sou ser construído!

23 de julho de 2010

UMA HIPÓTESE E DUAS CORRENTES

(DESENHOS DE LEONARDO DA VINCI)


Um dia vão escrever-me a biografia, com atestados e certidões, coisa imponente. Vão verificar que existi á força bruta de um assento de nascimento e com a certeza de um óbito.

Para talhar o trabalho, sempre tão difícil de descrever o caminhar de um Homem, escrevam apenas: nasceu, aprendeu a andar e um dia pereceu exausta de tanto pensar; é o que basta, as entrelinhas ditarão o resto.



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Penso com todos os fios da razão

E logo ali ela se me perdeu.

Escuto a verdade com toda a força

Do meu ouvir e logo ali ela se silenciou.

Vejo o sonho com toda a utopia

De se sonhar e logo ali ele se quedou.

São assim escrupulosas as artérias de se ser.

Esgrimem argumentos os pensantes

Mas também eles são agnósticos.

Com que ficamos depois da tempestade?

Com os cacos do que não se lhe levou as águas da tormenta.

Chega? Talvez… mas quem me pediu para existir?



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Toda a metafísica se me dói

Como uma linha de Verlaine em Pessoa.

Toda a existência se me corrói

Como uma linha de Sartre em Vergílio.

E são assim construídos sentidos ausentes

Com a força pura do pensar

Como esses ossos dormentes em que me deixo estar.

Há laia de me ler nas palavras dos outros

Vou-me adocicando em sonos poucos

Mas toda a pureza do Ser vai aos outros buscar

A certeza de Ter águas em alto mar.

21 de julho de 2010

VER

(O HOMEM DE VITRÚVIO - LEORNADO DA VINCI)


"Aprender a ver - habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar-que-as-coisas-se-aproximem-de-nós; aprender a adiar o juízo, a rodear e a abarcar o caso particular a partir de todos os lados. Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito: não reagir imediatamente a um estímulo, mas sim controlar os instintos que põem obstáculos, que isolam. Aprender a ver, tal como eu o entendo, é já quase o que o modo afilosófico de falar denomina vontade forte: o essencial nisto é, precisamente, o poder não «querer», o poder diferir a decisão. Toda a não-espiritualidade, toda a vulgaridade descansa na incapacidade de opor resistência a um estímulo — tem que se reagir, seguem-se todos os impulsos. Em muitos casos esse ter que é já doença, decadência, sintoma de esgotamento, — quase tudo o que a rudeza afilosófica designa com o nome de «vício» é apenas essa incapacidade fisiológica de não reagir. — Uma aplicação prática do ter-aprendido-a-ver: enquanto discente em geral, chegar-se-á a ser lento, desconfiado, teimoso. Ao estranho, ao novo de qualquer espécie deixar-se-o-á aproximar-se com uma tranquilidade hostil, — afasta-se dele a mão. O ter abertas todas as portas, o servil abrir a boca perante todo o facto pequeno, o estar sempre disposto a meter-se, a lançar-se de um salto para dentro de outros homens e outras coisas, em suma, a famosa «objectividade» moderna é mau gosto, é algo não-aristocrático par excellence." - Crepúsculo dos Ídolos de  Friedrich Nietzsche.



Escutar e ver não é tão fácil como aparenta ser.

Tudo bem, olhos e ouvidos tomos possuímos, é um dado, em regra, adquirido à nascença.

A questão que coloco é: será que todos nós vemos e ouvimos correctamente? Dito de outra forma, passado o impulso inicial e ante um determinado acontecimento, realmente vimos e ouvimos, ou, limitamo-nos como caixa formatada a reagir?

Por experiência própria, sei bem que nem sempre ouço e vejo, retiro, muitas das vezes, conclusões baseadas em puras reacções mecânicas, que mais não são do que mecanismos internos de defesa.

Outras vezes, a reacção mecânica, nada tem a ver com a defesa, antes com presunções e ideias pré feitas.

O que nos diz Nietzsche, no texto supra transcrito, é que, ao que vemos, podemos à senda da nossa vontade, não reagir, de acordo, não com o que vemos, mas com o impulso que nos provoca o que vemos.

A tendência, direi quase que natural, é a da critica, há como que um estender exagerado de considerações sobre o que vemos, e isso denota-se, particularmente, quando o que vemos nem sequer tem suma importância, ou, quando o que vemos é algo novo e desconhecido.

E se nós, com a nossa vontade, retirássemos o impulso inicial crítico e deixássemos as ideias pré-concebidas fora da visão, o que é que nós, realmente, víamos?

Toda a arte pressupõe duas coisas: inspiração e vontade, mas dessas duas coisas nada se materializaria sem um contínuo labor.

O dia-a-dia de um Homem, não é muito diferente da arte, quando ele toma para si, a feitura da sua obra.

19 de julho de 2010

ESCOLHA

(O RAPTO DE  GANIMEDES - MICHELANGELO)




“Está sentada numa cadeira de rodas. Tem as pernas cortadas pelos joelhos. E entretanto a morte vai-a trabalhando no que lhe resta ainda vivo. Havia uma operação a retalhar essa morte, mas os médicos hesitam no receio de lhe ajudar o trabalho. E enquanto o fim não vem, ela pinta. E ri com os amigos. E inventa festins para celebrar com eles a alegria que perdura. Breve talvez tudo acabará. Mas como o apóstolo, ela poderá perguntar ó morte, onde está a tua vitória? E a morte levá-la-á, enfim, mas acabrunhada de vergonha e de silêncio.”Vergílio Ferreira in “Escrever”, Bertrand Editora.


A vida é o maior dom de um Homem, e é-o porque sem ela, no mundo a que chamamos “real” nada poderia existir, ser construído e perpetuado.

A maioria de nós, não tem o mínimo conhecimento desse incrível dom que é a vida, caminha no mundo com lamentos, de coração e olhar vazios, clamando dos Deuses amparo para as suas dores.

Há aqueles ainda que reclamam o seu direito a escolher entre estar vivo e estar morto, bradando aos ventos que a vida e a morte não podem ser escolha de um qualquer Deus.

Outros há ainda que, vivem por viver, estão cá, que se há-de fazer… continuar a passar os dias e esperar o que tiver que acontecer a seguir.

Os tempos de hoje são assim a modos que amorfos, sem chama, fugidios nas horas de prazer, penosos e longos nas horas de dor. Como se o facto de se respirar fosse um fardo duro de suportar. Fizeram-nos assim, que se há-de fazer? É o que dizem…

Mas quem é que os fez assim? Acaso a vida de um homem é diferente da do outro? Não respiram os dois? Não é carne, ossos e sangue o que compõe, os dois?

A nossa sorte é que os há, a quem a vida é mais que um longo suspiro, mais que um bramir de ossos, ou, um ai jesus, é uma bênção, dádiva inigualável de se ser, de se existir.

Para nossa salvação, há quem não pergunte porque tem vida, quem agarre nela e a sinta e a use em cada poro do seu ser, há quem não vigie o fim dos dias para mudar, para crescer, para ir mais além e roubar dos céus pedaços de infinito, há quem não aguarde os desígnios dos deuses para rir e há quem não se preocupe com o chegar da morte, porque apreendeu a sentir a sua vida, porque usou cada segundo do seu dom. E a estes o que poderá a morte fazer, senão os levar silenciosa?

E a todos os Homens foi dito: a escolha é tua.

15 de julho de 2010

NÃO TE ESCONDAS



Não te escondas…

Há labirintos como sedes de vitórias

Nenúfares naufragando á costa mar

Espaços vazios sem sentido para parar

Libelinhas frenéticas na roda dos sentidos

Há marcas de néctar nas glórias

Como espadas de histórias nos mitos perdidos

Não te escondas…

Dá um balanço em direcção ao infinito

Solta as candeias avessas aos auguros

Trepa, rebola e recolhe esses muros

Nada de nada te impede de rir

Luz que trespassa o pequenito

E vem de longe ver-te partir

Não te escondas…

Há chama nas clarabóias da vida

Mastro de velas ao luar

Pirilampos sacudindo o ar

Sonhos livres de fraquinhos

Cabelos ao vento em cela sentida

Grilos gritando aos pouquinhos

 
Não te escondas…

As searas brotam selvagens

Ante a cozedura dos avatares

Chega, não lamentes os azares

Que o caminho se faz caminhando

Sem a ceifa das vagens

Mas com o clarear do teu mando.

Não te escondas, entra e deixa-te ficar.


8 de julho de 2010

ONDE ESTÃO AS FÚRIAS QUE AS NÃO ENCONTRO?


(O REMORSO DE ORESTES - WILLIAM-ADOLPHE BOUGUEREAU)


Onde estão as Fúrias que as não encontro?


Jornada de melancolia desordeira

Glória, sede e vida inteira

Pára-raios, desova de ideia

Ais do que me dou no meio da cheia.



Onde estão as Fúrias que as não encontro?

Barco de papel feito ponto pontual

Como osso de Aquiles no carnaval

Traquinices de plebeia no reino do mal

Nada é nunca de fissura igual.



Onde estão as Fúrias que as não encontro?

Bola, bolinha sempre tão pequenina

Seus olhos como os da menina

Brincam de mentirinha

E choram de manhãzinha.


 
Onde estão as Fúrias que as não encontro?

Navegadores de mares ingovernáveis

Suspiro… as parcas são indomesticáveis

Gritos perdidos,  deuses afáveis

Mentira das mentiras, verdades inigualáveis.

Onde estão as Fúrias que as não encontro?