9 de dezembro de 2013

NOTAS DE AUTOGNOSE


(JOAQUIM VALÉRIO -IMAGEM DO ACERVO PESSOAL DA GESTORA DO BLOG)


São duas da manhã, lá fora silenciam-se os ruídos amorfos de um início de madrugada. Sabemos que a cidade e vida não dorme, apenas se apazigua em alguns nervos. É neste silêncio ilusório que se aquietam as ideias frenéticas das quotidianas correrias, dos mil e um afazeres com que entupimos a vida. Na memória viva e quente ressoa um certo olhar contemplativo, singelo, tão nu que qualquer um sente que ele nada tem, e, no entanto, nele sossegadamente tudo se completa. Nada há a esconder, nada há a procurar, apenas há essa comunhão indescritível de estar-se no mesmo horizonte onde se esteve uma vida inteira.

O olhar é do meu avô, é um azul límpido que encontro num dia da minha infância onde ele carinhosamente me guiou pelas entranhas da sua arte, como reduto de uma existência vivida. Contemplava o mesmo campo onde durante uma vida inteira tinha pastado as suas cabras, dia após dia sem busca ou demanda. Era um homem simples, que não sabia ler, nem escrever e que só muitos anos mais tarde, quase no fim da sua vida, me revelou que sabia esculpir o seu nome, e não mais que isso, porque afinal o mundo das letras para mais nada lhe servia.

Como é curioso o espírito humano, assim de repente vinda do nada, aconchega-se uma fotografia há tanto tempo perdida, voltam à memória os sons, os cheiros e as imagens de um tempo tão longinco que duvidamos que tenha existido, e, no entanto, as suas impressões digitais são tão perenes, como as das mãos que esmagam as teclas com que agora escrevo.

De um outro baú, assola-me a imagem do meu pai, muito diferente da do meu avô, pese embora seja seu filho e conheça os seus horizontes melhor que eu. O meu pai, também ele um homem simples, procura não exigir muito da vida, tal como o meu avô também ele reserva para si o sentido das coisas, difere dele, entre tantos outros pontos, pela incapacidade de traduzir os sentimentos, nesse campo embora saiba ler e escrever, não lhe arrancamos uma só palavra, nele a herança materna cinzelou um maior número de genes.

O meu avô conhecia a face simples dos sentimentos, espelhava-a num sorriso impar, que nunca mais encontrei… embora muitos sejam os rostos com que me deparo ao longo da vida. Mas a humildade daquele sorriso, espelhada numa aceitação tão própria, nunca mais a encontrei. A grandeza do sorriso do meu avô residiu sempre, no esculpido das suas rugas na abertura imediata do sentir e na nudez da carne que lhe revestia os ossos.

É nestes dois homens, pilares da minha existência, que encontro sem máscaras, sem espectativas desmesuradas, sem actos heróicos, ou demandas homéricas, a matéria do Homem.
Porque o Homem resume-se a isso, a um amontoado de alma, sentidos, carne, nervos e ossos, quere-lo diferente é agir contra natura.

19 de novembro de 2013

ESCRITO HOMEM


(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG)



DISCURSO DE

10 DE DEZEMBRO DE 1957

ESTE DISCURSO FOI PRONUNCIADO,

SEGUNDO A TRADIÇÃO, NA CÂMARA MUNICIPAL

DE ESTOCOLMO, NO FIM DO BANQUETE

QUE ENCERRAVA AS CERIMÓNIAS

DA ATRIBUIÇÃO DOS PRÉMIO NOBEL.

 

Ao receber a distinção com que a vossa livre Academia houve por bem honrar-me, a minha gratidão era tanto mais profunda quanto eu avaliava até que ponto essa recompensa excedia os meus méritos pessoais. Qualquer homem e, por mais forte razão, qualquer artista, deseja ser compreendido. Também eu o desejo. Mas não é possível tomar conhecimento da vossa decisão sem comparar a sua retumbância com o que eu na realidade sou. Como é que um homem quase jovem, apenas rico das suas dúvidas e de uma obra ainda em construção, habituado a viver no isolamento do trabalho ou no refúgio das suas afeições, teria sabido, a não ser com uma espécie de pânico, de uma sentença que o expunha de golpe, só e reduzido a si mesmo, à crueza da luz? Com que ânimo, também podia ele receber esta honra à mesma hora em que, na Europa, outros escritores, entre os maiores, estão reduzidos ao silêncio, e ao mesmo tempo que a sua própria terra natal conhece uma desventura incessante?

Senti essa desordem e essa perturbação interior. Para voltar a encontrar paz foi-me preciso, em suma, cumprir ordens de uma sorte demasiado generosa. E já que não podia igualar-me a ela apenas com o apoio dos meus merecimentos, não achei mais nada que me ajudasse senão o que me tem mantido, nas circunstâncias mais adversas, ao longo de toda a minha vida: a ideia que faço da minha arte e do papel do escritor. Seja-me permitido apenas que, com um sentimento de gratidão e de amizade, vos diga, tão simplesmente quanto puder, qual é esta ideia.

Pessoalmente não posso viver sem a minha arte. Mas nunca pus essa arte acima de tudo. Se me é necessária é, pelo contrário, porque não se afasta de ninguém e me permite viver, tal como sou, ao nível de todos. A arte não é aos meus olhos um regozijo solitário. É um meio de comover um maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Obriga, pois, o artista a não isolar-se; submete-o à verdade mais humilde e mais universal. E aquele que, muitas vezes, escolheu o seu destino de artista porque se sentia diferente, bem depressa aprende que não conseguirá alimentar a sua arte, e a sua diferença, senão confessando a sua semelhança com todos. O artista forja-se neste ir e vir perpétuo de si para os outros, a meio caminho da beleza sem a qual não pode passar e da comunidade a que não pode subtrair-se. Por isso é que os verdadeiros artistas nada desprezam; obrigam-se a compreender em vez de julgar. E, se têm partido a tomar neste mundo, não pode ser senão o de uma sociedade na qual, segundo a palavra enfática de Nietzsche, já não reinará o juiz mas o criador, quer seja ele trabalhador ou intelectual.

Ao mesmo tempo, o papel do escritor não se desliga de obrigações difíceis. Por definição, não pode ele pôr-se, hoje em dia, ao serviço dos que fazem a história: está ao serviço dos que a sofrem. Ou, se assim não for, ei-lo só e privado da sua arte. Nem todos os exércitos da tirania, com os seus milhões de homens, poderão arrancá-lo à solidão, mesmo e sobretudo se consentir em seguir-lhes o passo. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações no outro cabo do mundo, basta para retirar o escritor do exílio, pelo menos de cada vez que consiga, no meio dos privilégios da sua liberdade, não esquecer aquele silêncio e fazê-lo ressoar pelos meios da arte.

Nenhum de nós é suficientemente grande para tal vocação. Mas, em todas as circunstâncias da sua vida, obscuro ou provisoriamente célebre, posto a ferros pela tirania ou livre por algum tempo de exprimir-se, o escritor pode recuperar o sentimento de uma comunidade viva que o justificará, com a única condição de aceitar, enquanto puder, os dois encargos que fazem a grandeza da sua profissão: o serviço da verdade e o da liberdade. Visto que a sua evocação é a de reunir o maior número possível de homens, não pode ela acomodar-se à mentira e à servidão que, onde reinam, fazem proliferar as solidões. Quaisquer que sejam as nossas imperfeições pessoais, a nobreza da nossa profissão radicará sempre em dois compromissos difíceis de manter: a recusa de mentir sobre o que se sabe e a resistência à opressão.

Durante mais de vinte anos de uma história dementada, perdido sem socorro, como todos os homens da minha idade, nas convulsões do tempo, fui assim animado pelo sentimento obscuro de que escrever era, nos nossos dias, uma honra, porque esse acto obrigava, e obrigava não apenas a escrever. Obrigava-me em particular a suportar, tal como era e segundo as minhas forças, com todos os que viviam a mesma história, o infortúnio e a esperança que partilhávamos. Esses homens, nascidos no início da Primeira Guerra Mundial, que tiveram vinte anos no momento em que se instalavam ao mesmo tempo o poder hitleriano e os primeiros processos revolucionários, que depois foram postos frente a frente, para completar a sua educação, na guerra de Espanha, na Segunda Guerra Mundial, no universo concentrista, na Europa da tortura e das prisões, têm hoje de criar os seus filhos e as suas obras num mundo ameaçado de destruição nuclear, ninguém, suponho eu, pode pedir-lhes que sejam optimistas. E sou, até, de opinião que devemos compreender, sem deixar de lutar contra eles, o erro dos que, por via de um sobrelanço de desespero, reivindicaram o direito à desonra e se precipitam nos niilismos da época. Mantém-se, porém, que a maioria de entre nós, no meu país e na Europa, repeliu esse niilismo e pôs-se em busca de uma legitimidade. Foi-lhes preciso forjar uma arte de viver em tempo de catástrofe, para nascer uma segunda vez, e lutar depois, de cara descoberta, contra o instinto de morte a trabalhar na nossa história.

Sem dúvida que cada geração se supõe votada a refazer o mundo. A minha sabe, contudo, que não o refará. Mas a sua tarefa talvez seja maior. Consiste ela em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrompida, em que se misturam as revoluções falhadas, as técnicas que se tomaram loucas, os deuses mortos e as ideologias esgotadas, em que medíocres poderes hoje tudo podem destruir mas já não sabem convencer, em que a inteligência se rebaixou até fazer-se serva do ódio e da opressão, esta geração teve de, em si mesma e à sua volta, restaurar, apenas a partir das suas negações, algo do que faz a dignidade de viver e de morrer. Em face de um mundo ameaçado de desintegração, em que os nossos grandes inquisidores se arriscam a estabelecer para sempre o reino da morte, ela sabe que deveria, numa espécie de doida corrida contra-relógio, restaurar entre as nações uma paz que não seja a da servidão, reconciliar de novo trabalho e cultura e voltar a fazer com todos os homens uma arca da aliança. Não é seguro que ela possa alguma vez levar a cabo esta tarefa imensa, mas é seguro que, por toda a parte no mundo, ela cumpre já a sua dupla aposta de verdade e liberdade e, chegada a ocasião, sabe por ela morrer sem ódio. É ela que merece ser aclamada e encorajada por toda a parte onde se encontra e, sobretudo, onde se sacrifica. É para ela, em todo o caso, que, certo do vosso profundo acordo, desejaria transferir a honra que acabais de me dar.

Ao mesmo tempo, depois de ter falado da nobreza do mister de escrever, eu teria reposto o escritor no seu verdadeiro lugar, sem outros títulos que não sejam os que partilha com os seus companheiros de luta, vulnerável mas teimoso, injusto e apaixonado pela justiça, construindo a sua obra sem vergonha nem orgulho, à vista de todos, sempre dividido entre a dor e a beleza, e dedicado, enfim, a tirar do seu duplo ser as criações que obstinadamente tenta edificar no movimento destruidor da história.

Quem, depois disso, poderia esperar dele soluções já prontas e belas morais? A verdade é misteriosa, perigosa, fugitiva, sempre por conquistar. A liberdade é perigosa, tão dura de viver como excitante. Devemos caminhar para estes dois fins, penosa mas resolutamente, antecipadamente certos dos nossos desfalecimentos em tão longo caminho. Que escritor ousaria, por conseguinte, em boa consciência, fazer-se pregador de virtude? Quanto a mim, é preciso que diga, uma vez mais, que não sou nada disso. Não pude nunca renunciar à luz, à felicidade de existir, à vida livre em que cresci. Apesar, porém, de esta nostalgia explicar muitos dos meus erros e das minhas culpas, ajudou-me sem dúvida a compreender melhor a minha profissão, ajuda-me ainda a manter-me cegamente junto de todos esses homens silenciosos que não suportam no mundo a vida que lhes é dada senão pela recordação ou o regresso de breves e livres felicidades.

Assim reconduzido ao que na realidade sou, aos meus limites, às minhas dúvidas, como à minha fé difícil, sinto-me mais livre para vos demonstrar, a concluir, o alcance e a generosidade da distinção que acabais de me conceder, mais livre para dizer-vos também que desejaria recebê-la como uma homenagem prestada a todos os que, partilhando o mesmo combate, não receberam qualquer privilégio, antes pelo contrário, desgraça e perseguição.

Restar-me á, então, agradecer-vos, do fundo do coração, e fazer-vos publicamente, como testemunho pessoal de gratidão, a mesma e antiga promessa de fidelidade que todo o verdadeiro artista, em cada dia, faz a si mesmo, no silêncio.

Albert Camus in “O Avesso e o Direito / Discurso da Suécia”, Editora Livros do Brasil, S.A., Págs. 83 a 88.

17 de novembro de 2013

VÓMITO DE PALAVRAS




Escrever é triste. Impede a conjugação de tantos outros verbos. Os dedos sobre o teclado, as letras se reunindo com maior ou menor velocidade, mas com igual indiferença pelo que vão dizendo, enquanto lá fora a vida estoura não só em bombas como também em dádivas de toda natureza, inclusive a simples claridade da hora, vedada a você, que está de olho na maquininha. O mundo deixa de ser realidade quente para se reduzir a marginália, puré de palavras, reflexos no espelho (infiel) do dicionário.

O que você perde em viver, escrevinhando sobre a vida. Não apenas o sol, mas tudo que ele ilumina. Tudo que se faz sem você, porque com você não é possível contar. Você esperando que os outros vivam, para depois comentá-los com a maior cara-de-pau ("com isenção de largo espectro", como diria a bula, se seus escritos fossem produtos medicinais). Selecionando os retalhos de vida dos outros, para objeto de sua divagação descompromissada. Sereno. Superior. Divino. Sim, como se fosse deus, rei proprietário do universo, que escolhe para o seu jantar de notícias um terremoto, uma revolução, um adultério grego — às vezes nem isso, porque no painel imenso você escolhe só um besouro em campanha para verrumar a madeira. Sim, senhor, que importância a sua: sentado aí, camisa aberta, sandálias, ar condicionado, cafezinho, dando sua opinião sobre a angústia, a revolta, o ridículo, a maluquice dos homens. Esquecido de que é um deles.

Ah, você participa com palavras? Sua escrita — por hipótese — transforma a cara das coisas, há capítulos da História devidos à sua maneira de ajuntar substantivos, adjetivos, verbos? Mas foram os outros, crédulos, sugestionáveis, que fizeram o acontecimento. Isso de escrever «O Capital» é uma coisa, derrubar as estruturas, na raça, é outra. E nem sequer você escreveu «O Capital». Não é todos os dias que se mete uma ideia na cabeça do próximo, por via gramatical. E a regra situa no mesmo saco escrever e abster-se. Vazio, antes e depois da operação.

Claro, você aprovou as valentes ações dos outros, sem se dar ao incómodo de praticá-las. Desaprovou as ações nefandas, e dispensou-se de corrigir-lhes os efeitos. Assim é fácil manter a consciência limpa. Eu queria ver sua consciência faiscando de limpeza é na ação, que costuma sujar os dedos e mais alguma coisa. Ao passo que, em sua protegida pessoa, eles apenas se tisnam quando é hora de mudar a fita no carretel.

E então vem o tédio. De Senhor dos Assuntos, passar a espectador enfastiado do espetáculo. Tantos fatos simultâneos e entrechocantes, o absurdo promovido a regra de jogo, excesso de vibração, dificuldade em abranger a cena com o simples par de olhos e uma fatigada atenção. Tudo se repete na linha do imprevisto, pois ao imprevisto sucede outro, num mecanismo de monotonia... explosiva. Na hora ingrata de escrever, como optar entre as variedades de insólito? E que dizer, que não seja invalidado pelo acontecimento de logo mais, ou de agora mesmo? Que sentir ou ruminar, se não nos concedem tempo para isto entre dois acontecimentos que desabam como meteoritos sobre a mesa? Nem sequer você pode lamentar-se pela incomodidade profissional. Não é redator de boletim político, não é comentarista internacional, colunista especializado, não precisa esgotar os temas, ver mais longe do que o comum, manter-se afiado como a boa peixeira pernambucana. Você é o marginal ameno, sem responsabilidade na instrução ou orientação do público, não há razão para aborrecer-se com os fatos e a leve obrigação de confeitá-los ou temperá-los à sua maneira. Que é isso, rapaz. Entretanto, aí está você, casmurro e indisposto para a tarefa de encher o papel de sinaizinhos pretos. Concluiu que não há assunto, quer dizer: que não há para você, porque ao assunto deve corresponder certo número de sinaizinhos, e você não sabe ir além disso, não corta de verdade a barriga da vida, não revolve os intestinos da vida, fica em sua cadeira, assuntando, assuntando.

Carlos Drummond de Andrade, in '" Poder Ultrajovem", Editora José Olympio.


15 de novembro de 2013

EQUINODERME


(IMAGEM FOTOGRAFADA PELA GESTORA DO BLOG)



De que lado me encontro no ar?
De que ente serei?
No amparo de ficar,
De ti me apartei.
 
Se dos poemas escritos,
Todos eles benditos,
Não houve um perdão.
Que procuras então?
 
Das almas plantadas,
Todas elas quedadas,
Não me viste partir.
Porque anseias sentir?
 
 

5 de novembro de 2013

NISI UTILE EST QUOD FACIMUS, STULTA EST GLORIA


 (Imagem fotografada e editada pela gestora do blogue)




Há um significado. É verbo?
Ou só uma argamassa de letras?
No meio de todas elas o que há de ti?
Bem sei… acepipes de quem se julga a pensar.
Para que te quedes aqui, não pensarei.
É promessa o escutar dos teus ais jesus lutulentos.
É promessa não beber da tua fina glória.
A mim, bastam-me os ossos ao andamento.




26 de junho de 2013

REALIDADE OU A FALÁCIA DA UTOPIA

(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG.)



 “Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspectiva que nascem entre as suas linhas. Li quase tudo quanto os nossos historiadores, os nossos poetas e mesmo os nossos narradores escreveram, apesar de estes últimos serem considerados frívolos, e devo-lhes talvez mais informações do que as que recebi das situações bastante variadas da minha própria vida. A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.

Mas estes mentem, mesmo os mais sinceros. Os menos hábeis, por falta de palavras e de frases onde possam abrangê-la, traçam da vida uma imagem trivial e pobre; alguns, como Lucano, tornam-na mais pesada e obstruída com uma solenidade que ela não tem. Outros, pelo contrário, como Petrónio, aligeiram-na, fazem dela uma bola saltitante e vazia, fácil de receber e de atirar num universo sem peso. Os poetas transportam-nos a um mundo mais vasto ou mais belo, mais ardente ou mais doce que este que nos é dado, por isso mesmo diferente e praticamente quase inabitável. Os filósofos, para poderem estudar a realidade pura, submetem-na quase às mesmas transformações a que o fogo ou o pilão submetem os corpos: coisa alguma de um ser ou de um facto, tal como nós o conhecemos, parece subsistir nesses cristais ou nessas cinzas. Os historiadores apresentam-nos, do passado, sistemas excessivamente completos, séries de causas e efeitos exactos e claros de mais para terem sido alguma vez inteiramente verdadeiros; dispõem de novo esta dócil matéria morta, e eu sei que Alexandre escapará sempre mesmo a Plutarco. Os narradores, os autores de fábulas milésias, não fazem mais, como os carniceiros, que pendurar no açougue pequenos bocados de carne apreciados pelas moscas. Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.” -  Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano'.


Justamente hoje procurava num dos meus livros um sentido para análise, dispersa-se sempre na azáfama do quotidiano, no entanto, como dizem os italianos “cerca, trova”, e ao fim e ao cabo tudo se interliga.

Fechada no meio dos Diários de Al Berto estava uma frase de Marguerite Yourcenar do Livro Memórias de Adriano, “A vida, tal como a vivemos, não é um momento de repouso.”. A frase fez soar campainhas, de tal modo que, dei por mim a relembrar essa obra essencial de Youcenar, lida há já largos anos, numa altura em que se me assolou uma febre sobre Adriano, ainda hoje ele é para mim o melhor imperador romano. No entanto, a distância que escoa entre o momento em que mergulhei nas Memórias e o dia de hoje, permitiu-me um distanciamento desapaixonado, essa é talvez a melhor vantagem da passagem do tempo, a desassociação dos sentidos dos factos. Essa é também, a argamassa com que se consolida a experiência e se preenche a espinha dorsal dos homens.

Ora tudo isto, a conjugação das campainhas que me levaram às ideias e das ideias aos livros, fez-me pensar na realidade, aquela que supostamente acontece e existe no plano do físico. Porque, em rigor, é nesse plano que se manifesta tudo o resto, a vida não acontece nas linhas de um livro ou no balbucio de uma ideia. Mas será a manifestação em massa corpórea a realidade?

Vejamos, a dissociação dos sentidos dos factos, o distanciamento dos acontecimentos e o uso da razão permito-nos formular uma tese, a vivência dos factos em conjugação com a experiência adquirida, permitir-nos-á formular outra. Mas, entre duas teses possíveis de formular qual será a que contém a realidade?


Poder-se-ia discursar infinitamente sobre o assunto, e em cada discurso cairíamos, retumbantemente na utopia, e isto porque a realidade, pese embora seja um conceito universal, é assimilada pelo homem á luz do seu eu. Daí que, a realidade no homem possa assumir diversas formas, dependendo do modo como esta lhe advém, se através de método directo, ou seja, através da vivência e por meio da experiência, ou, por método indirecto, através de outros homens, quer seja por análise que a eles faça, ou que veja reproduzido em livro. Adriano pela pena de Marguerite Yourcenar, manifesta que, para o homem em concreto, realidade alguma existe condensada num só método, é necessário pois que todos se considerem, isso mesmo, transportam as linhas finais do texto supra transcrito: “Adaptar-me-ia muito mal a um mundo sem livros; mas a realidade não está lá, porque eles a não contêm inteira.”.


21 de maio de 2013

ANTE TI

(Rembrandt - Auto-retrato)



Ante ti escrevo com as mãos gastas de uma labuta

Ardilosa e decrépita de significados.

Gasto o tempo e a vontade, restam-me linhas…

Dessas que se apelidam de tortas, mas que se endireitam

A remate nos passos de um homem.



Poderia ter ganas de poeta, remar contra marés,

Mares ou sonhos nunca antes navegados!

Arregalar-me no tempero de um acepipe

E gritar a plenos pulmões, oh infortúnio que me quedaste!



Mas são linhas e nessas só o pincel de retratista tem o seu engenho.

Diria que sim, que tens razão quando rezas as mezinhas

E te enfeitas de pertences para justificação do auguro,

Mas temo ser por demais certo o engodo dos deuses.



Na chama da vida não sobra espaço para desenganos,

Não há vespertinos enlaces nem noivos de papel.

Há sentido, de irmão caminho do teu ser.

E se é embarrilo do mistério?



Sossega, que ante ti escrevo, gasto mas vivo ainda,

Linhas de uma memória que se esvai morna.

Não é volúpia ou narcisismo de espelho é saudade!

Essa que só neste canto de mar ainda é real.



3 de maio de 2013

NARCISOS


(METAMORFOSE DE NARCISO - SALVADOR DALÍ)


Gladiavam às cegas o valor da visão, não aquela que advém dos olhos mas aquela outra que tolda o rumo de um Homem. Esgrimiam palavra a palavra na volúpia da retórica, troca falaz de egos. A inteligência da argumentação, a soma impar das premissas e o brilharete da conclusão, tudo cabia na chama imperiosa do princípio.

Discutiam como mestres de uma arte entranhada à força do raciocínio, mas findo o teatro da corte saiam vazios, despojados e inertes do sentido, quer das palavras quer da visão.

Questionavam sozinhos nos seus leitos de existências como teriam os sentidos escondido da razão o porquê das coisas. Era manifesto que em teoria o homem era perfeito, que em teoria a razão podia e devia comandar, mas era nos sentidos que ele, Homem, nascia, experimentava e se elevava. Como? Se era a razão o solo fértil e seguro? A lógica aliada à dedução dessentida dos factos era sem suprema dúvida o único caminho da verdade, mas olhavam as conclusões com os seus olhos de gente e elas eram frias estéreis e inverosímeis.

Voltavam ao debate, afastados ficariam esses fios de vivência… na polidez da perfeição não existe espaço para falhas, não existe espaço para porquês, o fulcral era encontrar a certeza com que se poderiam e deviam brindar os princípios dos novos homens.

Cegos de escolástica discutiam a visão sem nunca medirem ao Homem o seu pulso. Na perfeição do princípio morreram por desconhecerem a sua própria natureza.

6 de março de 2013

RESPOSTA Á VOSSA SENTENÇA

(Marcus Tullius Cícero)


Não tenho ilusões!
Nem sequer fracas manifestações
De um impeto incontrolado
De por desígnio ter falhado.

Não tenho mais sonhos meus!
Não tenho a massa dos plebeus
As hostes dos patrícios
Sequer desejos de malefícios.
 
Não tenho mais verdura de cera!
Envergadura de pompeia
Mais uma ou outra teia
Para lançar por mais uma era.
 
Não! Deposta foi a vaidade!
Toda ela sem falsidade
E ante vós foi depositada
Para por vós ser agraciada.

Se vos aprouver toda esta pompa
De bom grado vos é entregue
Mas não se queixem da glória pouca
Que da sede a fortuna bebe.

20 de fevereiro de 2013

FAZ FRIO




FAZ FRIO

Por entre o olhar vazio dos corvos



FAZ FRIO

Nas folhas do papel que não quis ser



FAZ FRIO

Nas entrelinhas estéreis da razão



FAZ FRIO

No eco dos fantasmas perdidos nos dias



FAZ FRIO

No medo alado ao sabor do infortúnio



FAZ FRIO

No semblante dorido do lobo que aguarda o desferir de mais um golpe



FAZ FRIO

No homem que se apartou da singeleza do ser



FAZ FRIO

De mim, de ti, de nós no desassossego do sentir



FAZ FRIO

Porque de frio nos vestimos uma vida inteira
Crentes na lógica matemática de um lugar no céu dos deuses e nas estátuas dos homens