19 de novembro de 2013

ESCRITO HOMEM


(IMAGEM FOTOGRAFADA E TRABALHADA PELA GESTORA DO BLOG)



DISCURSO DE

10 DE DEZEMBRO DE 1957

ESTE DISCURSO FOI PRONUNCIADO,

SEGUNDO A TRADIÇÃO, NA CÂMARA MUNICIPAL

DE ESTOCOLMO, NO FIM DO BANQUETE

QUE ENCERRAVA AS CERIMÓNIAS

DA ATRIBUIÇÃO DOS PRÉMIO NOBEL.

 

Ao receber a distinção com que a vossa livre Academia houve por bem honrar-me, a minha gratidão era tanto mais profunda quanto eu avaliava até que ponto essa recompensa excedia os meus méritos pessoais. Qualquer homem e, por mais forte razão, qualquer artista, deseja ser compreendido. Também eu o desejo. Mas não é possível tomar conhecimento da vossa decisão sem comparar a sua retumbância com o que eu na realidade sou. Como é que um homem quase jovem, apenas rico das suas dúvidas e de uma obra ainda em construção, habituado a viver no isolamento do trabalho ou no refúgio das suas afeições, teria sabido, a não ser com uma espécie de pânico, de uma sentença que o expunha de golpe, só e reduzido a si mesmo, à crueza da luz? Com que ânimo, também podia ele receber esta honra à mesma hora em que, na Europa, outros escritores, entre os maiores, estão reduzidos ao silêncio, e ao mesmo tempo que a sua própria terra natal conhece uma desventura incessante?

Senti essa desordem e essa perturbação interior. Para voltar a encontrar paz foi-me preciso, em suma, cumprir ordens de uma sorte demasiado generosa. E já que não podia igualar-me a ela apenas com o apoio dos meus merecimentos, não achei mais nada que me ajudasse senão o que me tem mantido, nas circunstâncias mais adversas, ao longo de toda a minha vida: a ideia que faço da minha arte e do papel do escritor. Seja-me permitido apenas que, com um sentimento de gratidão e de amizade, vos diga, tão simplesmente quanto puder, qual é esta ideia.

Pessoalmente não posso viver sem a minha arte. Mas nunca pus essa arte acima de tudo. Se me é necessária é, pelo contrário, porque não se afasta de ninguém e me permite viver, tal como sou, ao nível de todos. A arte não é aos meus olhos um regozijo solitário. É um meio de comover um maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e das alegrias comuns. Obriga, pois, o artista a não isolar-se; submete-o à verdade mais humilde e mais universal. E aquele que, muitas vezes, escolheu o seu destino de artista porque se sentia diferente, bem depressa aprende que não conseguirá alimentar a sua arte, e a sua diferença, senão confessando a sua semelhança com todos. O artista forja-se neste ir e vir perpétuo de si para os outros, a meio caminho da beleza sem a qual não pode passar e da comunidade a que não pode subtrair-se. Por isso é que os verdadeiros artistas nada desprezam; obrigam-se a compreender em vez de julgar. E, se têm partido a tomar neste mundo, não pode ser senão o de uma sociedade na qual, segundo a palavra enfática de Nietzsche, já não reinará o juiz mas o criador, quer seja ele trabalhador ou intelectual.

Ao mesmo tempo, o papel do escritor não se desliga de obrigações difíceis. Por definição, não pode ele pôr-se, hoje em dia, ao serviço dos que fazem a história: está ao serviço dos que a sofrem. Ou, se assim não for, ei-lo só e privado da sua arte. Nem todos os exércitos da tirania, com os seus milhões de homens, poderão arrancá-lo à solidão, mesmo e sobretudo se consentir em seguir-lhes o passo. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações no outro cabo do mundo, basta para retirar o escritor do exílio, pelo menos de cada vez que consiga, no meio dos privilégios da sua liberdade, não esquecer aquele silêncio e fazê-lo ressoar pelos meios da arte.

Nenhum de nós é suficientemente grande para tal vocação. Mas, em todas as circunstâncias da sua vida, obscuro ou provisoriamente célebre, posto a ferros pela tirania ou livre por algum tempo de exprimir-se, o escritor pode recuperar o sentimento de uma comunidade viva que o justificará, com a única condição de aceitar, enquanto puder, os dois encargos que fazem a grandeza da sua profissão: o serviço da verdade e o da liberdade. Visto que a sua evocação é a de reunir o maior número possível de homens, não pode ela acomodar-se à mentira e à servidão que, onde reinam, fazem proliferar as solidões. Quaisquer que sejam as nossas imperfeições pessoais, a nobreza da nossa profissão radicará sempre em dois compromissos difíceis de manter: a recusa de mentir sobre o que se sabe e a resistência à opressão.

Durante mais de vinte anos de uma história dementada, perdido sem socorro, como todos os homens da minha idade, nas convulsões do tempo, fui assim animado pelo sentimento obscuro de que escrever era, nos nossos dias, uma honra, porque esse acto obrigava, e obrigava não apenas a escrever. Obrigava-me em particular a suportar, tal como era e segundo as minhas forças, com todos os que viviam a mesma história, o infortúnio e a esperança que partilhávamos. Esses homens, nascidos no início da Primeira Guerra Mundial, que tiveram vinte anos no momento em que se instalavam ao mesmo tempo o poder hitleriano e os primeiros processos revolucionários, que depois foram postos frente a frente, para completar a sua educação, na guerra de Espanha, na Segunda Guerra Mundial, no universo concentrista, na Europa da tortura e das prisões, têm hoje de criar os seus filhos e as suas obras num mundo ameaçado de destruição nuclear, ninguém, suponho eu, pode pedir-lhes que sejam optimistas. E sou, até, de opinião que devemos compreender, sem deixar de lutar contra eles, o erro dos que, por via de um sobrelanço de desespero, reivindicaram o direito à desonra e se precipitam nos niilismos da época. Mantém-se, porém, que a maioria de entre nós, no meu país e na Europa, repeliu esse niilismo e pôs-se em busca de uma legitimidade. Foi-lhes preciso forjar uma arte de viver em tempo de catástrofe, para nascer uma segunda vez, e lutar depois, de cara descoberta, contra o instinto de morte a trabalhar na nossa história.

Sem dúvida que cada geração se supõe votada a refazer o mundo. A minha sabe, contudo, que não o refará. Mas a sua tarefa talvez seja maior. Consiste ela em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrompida, em que se misturam as revoluções falhadas, as técnicas que se tomaram loucas, os deuses mortos e as ideologias esgotadas, em que medíocres poderes hoje tudo podem destruir mas já não sabem convencer, em que a inteligência se rebaixou até fazer-se serva do ódio e da opressão, esta geração teve de, em si mesma e à sua volta, restaurar, apenas a partir das suas negações, algo do que faz a dignidade de viver e de morrer. Em face de um mundo ameaçado de desintegração, em que os nossos grandes inquisidores se arriscam a estabelecer para sempre o reino da morte, ela sabe que deveria, numa espécie de doida corrida contra-relógio, restaurar entre as nações uma paz que não seja a da servidão, reconciliar de novo trabalho e cultura e voltar a fazer com todos os homens uma arca da aliança. Não é seguro que ela possa alguma vez levar a cabo esta tarefa imensa, mas é seguro que, por toda a parte no mundo, ela cumpre já a sua dupla aposta de verdade e liberdade e, chegada a ocasião, sabe por ela morrer sem ódio. É ela que merece ser aclamada e encorajada por toda a parte onde se encontra e, sobretudo, onde se sacrifica. É para ela, em todo o caso, que, certo do vosso profundo acordo, desejaria transferir a honra que acabais de me dar.

Ao mesmo tempo, depois de ter falado da nobreza do mister de escrever, eu teria reposto o escritor no seu verdadeiro lugar, sem outros títulos que não sejam os que partilha com os seus companheiros de luta, vulnerável mas teimoso, injusto e apaixonado pela justiça, construindo a sua obra sem vergonha nem orgulho, à vista de todos, sempre dividido entre a dor e a beleza, e dedicado, enfim, a tirar do seu duplo ser as criações que obstinadamente tenta edificar no movimento destruidor da história.

Quem, depois disso, poderia esperar dele soluções já prontas e belas morais? A verdade é misteriosa, perigosa, fugitiva, sempre por conquistar. A liberdade é perigosa, tão dura de viver como excitante. Devemos caminhar para estes dois fins, penosa mas resolutamente, antecipadamente certos dos nossos desfalecimentos em tão longo caminho. Que escritor ousaria, por conseguinte, em boa consciência, fazer-se pregador de virtude? Quanto a mim, é preciso que diga, uma vez mais, que não sou nada disso. Não pude nunca renunciar à luz, à felicidade de existir, à vida livre em que cresci. Apesar, porém, de esta nostalgia explicar muitos dos meus erros e das minhas culpas, ajudou-me sem dúvida a compreender melhor a minha profissão, ajuda-me ainda a manter-me cegamente junto de todos esses homens silenciosos que não suportam no mundo a vida que lhes é dada senão pela recordação ou o regresso de breves e livres felicidades.

Assim reconduzido ao que na realidade sou, aos meus limites, às minhas dúvidas, como à minha fé difícil, sinto-me mais livre para vos demonstrar, a concluir, o alcance e a generosidade da distinção que acabais de me conceder, mais livre para dizer-vos também que desejaria recebê-la como uma homenagem prestada a todos os que, partilhando o mesmo combate, não receberam qualquer privilégio, antes pelo contrário, desgraça e perseguição.

Restar-me á, então, agradecer-vos, do fundo do coração, e fazer-vos publicamente, como testemunho pessoal de gratidão, a mesma e antiga promessa de fidelidade que todo o verdadeiro artista, em cada dia, faz a si mesmo, no silêncio.

Albert Camus in “O Avesso e o Direito / Discurso da Suécia”, Editora Livros do Brasil, S.A., Págs. 83 a 88.

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