(AL BERTO "Horto de Incêncio" - 3.ª edição - Dezembro de 2000. Fotografia da capa: Paulo Nozolino - Editora Assíro & Alvim)
Fantasmas… os da memória, ou, talvez os do coração, nunca os da razão. Fantasmas… recordo-me de que sempre amei a escrita, sem ela esfuma-se qualquer essência do que sou, e no entanto, nos meus fantasmas aparecem personagens que sempre disseram, “não o caminho não pode ser por aí, a arte das palavras é para os Grandes, e tu não serás um deles.” É curioso que se aniquilem os sonhos dos outros com base na própria imagem do fracasso e do medo, é curioso que de todas as heranças que se queiram transmitir, se prefira deixar os fantasmas, a um abraço forte…
Divago… nada disto tem a ver com o poema de Al Berto, nem com a escrita dele, mas só o tema deste poema faz-me voar, quem sabe em voo de espanto dos fantasmas…
O meu contacto com Al Berto, aconteceu por mero acaso, num banco da faculdade no último ano do curso de direito, onde um colega trazia debaixo do braço o Medo de Al Berto, para defender a sua nota de filosofia do direito. Pensei: “É louco! O que é que este livro tem a ver com a filosofia do direito?”. Mas - e há sempre um mas – a vida é dos loucos, dos verdadeiramente loucos que dissecam até às entranhas aquilo em que acreditam.
E em comunhão com os meus fantasmas aqui fica Al Berto, e o que ele espera não são fantasmas e encontra-se transcrito nas suas próprias palavras no final do poema.
fantasmas
bateram à porta – não abriste
estavas a convocar nesse instante a brancura,
dos dados por lançar e o corvo do sr. poe mais
o maléfico negrume dos mares de melville e
os passos em redor do andarilho etíope e
as mulheres da patagónia que estão sentadas
ao fim da tarde
à beira de insondáveis glaciares
seguias absorto o percurso daquele que comprava
revistas tabaco souvenirs e via os comboios
sumirem-se na gare de Munique – mais a rua onde
te encontro e te perco – rapaz
a quem se esqueceram de dizer que tinha um corpo
de papel bom para amachucar com os dentes
é verdade – bateram à porta
mas não podias abrir
nesta casa só sobrevive a memória turva
dos poemas amados - mais ninguém mais nada
além da parede de lodo e da caixa de sapatos
cheia de sílabas preciosas – e de uma mesa pequena
com um albatroz empalhado para te vigiar a alma
a um canto da sala o cigarro continua a arder
na ponta dos dedos do teu retrato escondido
atrás do sofá – virado para a parede
como tu
coberto de bolor de sustos e de aborrecimento
“Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório («Horto de Incêndio»). A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque.” – Al Berto