23 de dezembro de 2011

MEDO


(PABLO PICASSO 1903)

O medo, esse gigante de que todo o Homem foge, mesmo que, olhado bem de perto, ele mais não seja que um pigmeu, tem sido ao longo dos séculos a ervilha que atormenta o doce sono da princesa, o tremeluzido esfriar da espada do herói perdido na tormenta de si mesmo.


Ao longo dos dias, dos meses, dos anos…. enfim, da vida bucólica da História, tantos foram os medos que partiram, outros tantos, fizeram da sua presença uma acutilante premência, ou, não vivêssemos nós a eterna luta do Homem com a sua sombra.


Inventaram-se máquinas de destruição maciça, proclamou-se a guerra a plenos pulmões em nome de uma causa, em nome de um dar e de um tirar e assim se reduziram cidades a pó, Estados a dependências, culturas a lémures…


Aos poucos, como que embriagados na certeza de uma qualquer verdade, cremos estar perto de destruir a erva daninha que atormenta a paz e tranquilidade do Éden, cremos no reinventar do Mundo e do Homem, cremos ser capazes de fazer a Fénix renascer das cinzas.


Pergunto-me, quão longe estamos do sonho de Nero de incendiar Roma para a fazer renascer bela e graciosa, Dona e Senhora do Mundo?


E o medo? Onde pairará ele depois de tudo ser destruído?


Mas eis que nasceu uma nova aurora, ó Homem, acordámos e um foguetão aterrou na lua, umas páginas adiante e já nós procurávamos água em Marte, porque isto de, reinventar o mundo è vulgo perdido no sempre igual e é preciso ir mais adiante…


Mais adiante na nossa fuga, mais adiante que a nossa sombra, e assim, transportaremos para um eterno amanhã a malfadada confrontação, certos de que nesse amanhã, e nunca no hoje, residirá a precisa dose de coragem para o combate. Entretanto, como Césares venceremos e destruiremos tudo, certos da nobreza das nossas crenças, Donos e Senhores das nossas verdades.


E o medo?


Qual medo? Hoje estou cansado, a vida exige de mim, vivo e trabalho para reinventar o mundo, para me reinventar a mim. Sabes, talvez eu consiga o elixir da juventude, ou, talvez atinja a imortalidade, quem sabe se amanhã não estaremos em Júpiter… vê o quanto posso ser… observa o quanto é bela a minha obra.


E assim, com toda a sua arte e engenho concede o Homem hoje, como ontem e como sempre, a um pigmeu a força de um gigante.

7 de novembro de 2011

ESPELHO


(Caravaggio, Narciso, c. 1597, Palazzo Barberini, Roma.)


O espelho reflecte mil imagens cadentes
Translúcidas figurações de ti mesmo

Os astros já não respondem ao desacerto
Voluntário e quebrado dos ossos

Interrogações 
Ofegantes manifestações de um sentir ressequido


Que chãos pisarão teus pés homem dos Homens
Quando transportas nos poros a inércia galvanizada?


De que valem os Deuses se quebraste todas as crenças na razão pura do pensar?

A manhã será manhã
Com ou sem rostos no ciclo do mundo


E tu


Que serás no espelho?



22 de outubro de 2011

O PASSADO

(IMAGEM FOTOGRAFADA PELA AUTORA DO BLOGUE - ROMA 2010)


"Uma obra não resolve nada, assim como o trabalho de uma geração inteira não resolve nada. Os filhos - o amanhã - recomeçam sempre e ignoram alegremente os pais, o já feito. É mais aceitável o ódio, a revolta contra o passado do que esta beata ignorância. O que havia de bom nas épocas antigas era a sua constituição graças à qual se olhava sempre para o passado. Este, o segredo da sua inesgotável plenitude. Porque a riqueza de uma obra - de uma geração - é sempre determinada pela quantidade de passado que contém."


Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'  -  texto retirado do Citador.



Para mim a riqueza do Homem, não reside no presente ou no futuro, mas sim no passado, no já experimentado, no bom e no mau, essencialmente, no vivido. Só assim se pode construir um presente e um futuro. A necessidade de ruptura com o que foi, levou o Homem a esquecer o que é e de onde vem, limitando à priori o que será. E porquê? Porque na sua fuga embebida de revolta, ele abandona os erros, ignora-os, esconde-os debaixo do tapete, negligenciando, levianamente, conhecimento e suporte às gerações futuras.

De tragédias gregas e de heróis romanescos está a eternidade cheia, garantimos isso a cada virar de página do livro da vida. Há milénios que o Homem caminha sobre os seus dois pés, contudo, e como desde o inicio, é ainda incapaz de caminhar com a cabeça sobre os ombros.

Cesare Pavese, transcreve em linhas o essencial, uma grande obra, uma grande batalha vencida, não resolve nada, absolutamente nada, e porquê? Porque, amanhã também ela será esquecida, lançada às parcas e desfeita em pó como os ossos dos antepassados. O Homem do hoje só quer os feitos do futuro, a magnitude do ego alçado até á lua, tal qual, vencedor da suprema glória.

Dizei-me, quantos erros do passado praticas tu hoje, porque ignoras onde se errou ontem? Ajudar-te-ia mais a criar o amanhã ideias frescas e novas, ou, o conhecimento do que já foi, para que também tu possas não cair na mesma sacrossanta asneira?

Por último, pergunta-te: Onde serei mais Homem? A odiar, excomungar e a erguer revoluções por cada um dos erros do Homem. Ou, aprendendo a construir, a erguer e a solidificar os alicerces da Humanidade em cima de cada erro que já foi cometido?

Ignora o que foi feito ontem e vence muitas batalhas, tantas quantas te permitirem o corpo  e os deuses. Ergue grandes obras e uma estátua a cada esquina por todos os teus feitos, mas não te esqueças que há um amanhã e nele serás tão ignorado, como ignoras-te o teu passado.

5 de outubro de 2011

HUMANIDADE

(IMAGEM RETIRADA DAQUI)

"Não aleijemos a pobre humanidade mais do que ela já está com tantas sacudidelas da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo. Não sejamos tão crianças que queiramos levantar ao ar a esfera pretendendo agarrá-la apenas pelo hemisfério da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfério superior, porque a única maneira de agarrá-la bem tão-pouco é pôr-lhe as mãos por baixo, nem ainda abraçando-a com os dois braços e os dedos metidos uns nos outros para não deixar escapar as mãos e com o próprio peito do lado de cá a ajudar também; a única maneira de equilibrar a esfera no ar é deixá-la estar no ar como a pôs Deus Nosso Senhor, ás voltas à roda do sol, como a lua à roda de nós e assegurada contra todos os riscos dos disparates da humanidade. 
Não temos mais remédio do que ir aprender tecnicamente como funcionam estas coisas tão naturais! 
O Mundo da Natureza é o modelo dos modelos de todas as maquinarias, porque não havemos então de acertar também o mundo social no seu próprio funcionamento como todas as outras máquinas do mundo? "

Almada Negreiros, in "Ensaios" - Editor: INCM - Imprensa Nacional da Casa da Moeda, Colecção: Obras Completas de Almada Negreiros.


26 de setembro de 2011

PARTE

(IMAGEM RETIRADA DAQUI)

Olhou com dor os olhos dela, partiu. O caminho será longo, dias virão que se arrependerá de ter partido, mas hoje venceu-o o cansaço, o silêncio, a raiva incontida dos gestos que os aniquilam aos dois. Onde pode estar, na ausência, o amor?

O hábito articulou-lhes os dias, as respostas sempre iguais, o passar das horas e a contagem dos segundos numa aceitação passiva de um amanhã, nem melhor, nem pior, mas tão vazio como o hoje. Onde pára a memória do primeiro beijo? Que importa isso? Há as contas para pagar, os almoços de domingo, há o cunhado, a irmã, o pai, a tia, o primo, e toda uma sociedade a quem não se pode desiludir, fica-se.

Fica-se porque é dura a mudança, porque se teme a perda, o arrependimento, o passo errado. Ficasse porque é cómodo, é conhecido, é chão já palmilhado e não se tem de pedir perdão.

Fica-se porque o lamento é fácil, é a ardósia segura com que se pode escrever uma vida, e um suspiro dói menos que uma lágrima.

Há lá fora ar vivo de novos rosto, novas vibrações… e de novo a ausência de um para com outro, como foi que te conheci?

Mas hoje, hoje venceu-o o velho cansaço e por isso parte. A cabeça descolou-se do corpo… um turbilhão! E a vontade de gritar surge para afastar esse nó que lhe sufoca as entranhas.

Parte, não por um novo amor que lhe bate à porta, essa seria uma estrada segura…sim uma estrada segura…. Mas ele parte apenas porque lhe sufocam as memórias do que foi e a inexistência do que é.

15 de setembro de 2011

A ESCRAVATURA DOS ESPELHOS

(IMAGEM RETIRADA AQUI)


Nos dias que correm torna-se cada vez mais difícil encontrar pessoas únicas, de sentido próprio, daquelas que são como são, que mesmo ao pensarem num conceito universal, impõem à tradução do seu pensamento um cunho único. Pessoas que se destacam da multidão pelo seu génio próprio, que riem, choram e berram à sua única e singela maneira. Hoje, há como que uma estandardização do Homem, e o diferente tornou-se banal, de fácil encontro a cada esquina.

Não só vivemos uma época em que o que conta é o exterior, como se vive, literalmente, do espelho, procura-se em catálogo não só a imagem que ser quer ter, como o que se quer ser. A perfeição exige-se, proliferam as cirurgias estéticas, criam-se fotografias baseadas na imagem idealizada de um qualquer estereótipo e chama-se a isso beleza.

O Homem enveredou pelo caminho do sempre igual, nessa fuga interminável do confronto consigo mesmo, refugiou-se no espelho. Move-se como escravo ao comando ríspido da chibata de uma qualquer frívola senhora moda dos tempos.

Numa época em que tudo se pode encontrar no hipermercado do centro comercial da vila, não se conseguem encontrar Homens de verdade, feitos de carne, sangue e ossos, feitos dos traços próprios da vivência, marcados com as cicatrizes das batalhas vencidas e perdidas na vida. Não, isso é pertença do passado, hoje adornamos o corpo, polimos a pele até à lisura do mármore e saciamos o ego com um regozijo ao espelho, eis Senhores que o Homem evoluiu!

Cai o pano, a luzes do palco apagam-se, o que é que resta no silêncio, do teatro da vida? Que espelho funciona na escuridão para alimentar esse ego insaciável? Que Homem se é quando já não existem os outros para nos ver representar?


Mas não desesperemos! Nem pensemos demasiado no porquê das perguntas, porque amanhã de novo virá o nosso Amo de chibata em punho, comandar-nos a  vida.

11 de setembro de 2011

CHEGA AMANHÃ PELO CORREIO

(IMAGEM RETIRADA DAQUI)

"Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras  palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projecto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder económico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstractas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efémeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade..." - José Saramago, in "Revista Universidad de Antioquia (2001) - texto retirado do Citador, in "www.citador.pt".


Saramago é um escritor designado por uns de polémico, para outros não há perdão pelas ideologias que perfilhou e por isso mesmo, é irrelevante a sua escrita, ou, o seu pensar; não se lê ponto. Para muitos é uma referência, para mim é incrível que um só homem possa encerrar tanta opinião. Mas, daqui a cem anos o que restar da sua escrita não terá cunho algum, a não ser aquele que ficar do meandro das suas palavras e só elas poderão dizer se contêm centelha de imortalidade, no entanto, para a geração de então não haverá o árduo trabalho de separar o trigo do joio. Bons deuses poupámos pensar ao futuro!

E porque o que se quer é um Homem Económico, Elástico e Global, hoje (afinal o que conta não é o Saramago, nem o que ele pensa, escreve ou alvitra, ou sequer, o que qualquer comum homem pense, a não ser que venha em embrulho de montra, esse sim, importante porque se pode exibir ao vizinho, e isso é, sem suprema dúvida, o que mais importa) também não precisamos Ser. Afinal amanhã já temos futuro, foi encomendado via internet e são grátis os portes de envio, trás a chave mágica da partilha no facebook, twitter e quejandos, congratulemo-nos!

30 de agosto de 2011

MUDAR O MUNDO



E se de repente pudéssemos mudar o mundo? É uma ideia digna de um louco, eu sei! Mas… aposto que ao pensar-se nela se consegue um bom voo para um cem número de ideias de como se poderia fazer, o que se deveria eliminar, e por aí adiante. Duvido é que nunca ninguém tenha pensado no assunto. E aposto até que, em algum momento da vida, todos nós pensámos ser esse herói que sai de um qualquer livro de banda desenhada e num passe de mágica oferece a solução perfeita para todos os males, resgatando do abismo o Mundo são e salvo.

Aí está um dos grandes busílis do Mundo e do Homem, o herói. Do Mundo, porque o herói tarda em chegar, do Homem, porque insiste em ser o herói. E logo à partida se vê que ao misturar-se água e azeite nunca se consegue um líquido homogéneo, até porque como diz o ditado, o azeite vem sempre ao de cima.

Ah! Mas não considero a causa perdida e nem direi que é impossível mudar o Mundo. Impossível é ir à Lua de foguetão, impossível é saltar de uma ponte a uma altura de cinco mil metros e sobreviver, impossível é conhecer o centro da terra, e impossível é….

E tudo isto é ridículo, certo? Tudo o que acabei de dizer não passa de uma qualquer teoria louca cogitada num dia de ócio.

Mas a verdade é que também o salvar o Mundo é uma teoria louca, tão louca quanto o Homem ser um herói. Porque a questão é simples, quem é que disse ao Homem que ele tinha de ser o Herói salvador do Mundo? É ou não certo, segundo o que nos deu a conhecer a ciência, que já existia Mundo antes de existir Homem? Se sim, se é certo, então o que tem feito o Homem desde que chegou ao Mundo, senão mudá-lo?

E afinal para que se quer mudar o Mundo? Essa pergunta é fácil, tão fácil de responder, o Homem quer mudar o Mundo, para formá-lo de acordo com a sua imagem.

Em suma, se tudo o que escrevi mais não é que um devaneio em dia de ócio, o Mundo aguenta como aguenta qualquer louco inocente que cogita teorias mirabolantes e irreais. Mas - e há sempre um mas - um dia com o calcar do ócio, ou com a loucura dos homens, o Mundo não aguentará mais e vai transformar-se na imagem do Homem. Boa fortuna para esse Homem que se olhar no espelho! Saberá então que a chave sempre esteve na sua própria mão e não na sua imagem.


20 de agosto de 2011

VIDA?

(FOTOGRAFIA TIRADA PELA GESTORA DO BLOGUE - MEIA PRAIA, LAGOS, AGOSTO DE 2011)


Paixão de não amar...

Leveza de não ver...

A monotonia do meu ser...



Infame vida de que sou

O trecho mais completo,

Sangue que à alma não dou!



Lágrimas de ausência,

Intensa dor que de mim

Consome a rude gente.

A vida é mesmo assim?



17 de agosto de 2011

O HOMEM NÃO DESEJA A PAZ

(IMAGEM RETIRADA DAQUI)

"Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego colectivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em acção. Da paz se diz que é «podre», porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inactividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de facto é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados." - Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'


Vergílio Ferreira é essencialmente um escritor pensante, e curiosamente (ou talvez nem por isso) escolheu como principal profissão, a de professor. A sua escrita é dominada pelo tema do Homem, e em termos filosóficos raia o existencialismo, mesmo que na sua vasta obra o negue por diversas vezes. Preocupa-o a razão humana e os seus debates internos, mas essencialmente, é o futuro que lhe demanda a escrita.

Não é a primeira vez que publico textos de Vergílio Ferreira, e não o faço por mero gosto pessoal, faço-o porque no meio das tecnologias, das idas e vindas à Lua e de toda a azáfama do quotidiano, esqueceu-se o pensar. E é preciso escutar de todos os lados, sem olhar a quadrantes, classes, ou estilos. È preciso, igualmente, ter-se a noção de que não somos o futuro. Além de nós existirão (bem queiram os homens e já agora os deuses) centenas, senão, milhares de gerações e essas sim serão o futuro, a nós cabe-nos o hoje, o aqui e o agora, a nós cabe-nos o trabalho de criar o futuro, de passar a herança, e queiram os homens, que ela não se traduza numa mão cheia de nada e noutra cheia de fome. Pobre não é aquele que não tem bens, é aquele que não quer para si a responsabilidade e oportunidade de os criar.

25 de julho de 2011

EPOPEIA DO HUMANO


(Eugène-Henri-Paul Gaugin : Mahana no Atua  - 1894.)




Busco em ti a metáfora de verdades inverosímeis.

Há como que uma constatação fatídica do sempre igual

e eu descrente nas promessas dos deuses procuro em ti

a derradeira centelha do diverso, do colorido, do abismal enlace incógnito,

tal qual, libelinha frenética no imenso azul do céu.



Em consciente renúncia da razão, verto por todo o conhecido

ácido em proporções de mar na esperança de te sentir nu

dessa argamassa pungida dos tempos, dos homens e dos espelhos.



Não entrarão na epopeia números ou planos de arquitecto,

nem poderão as estrelas servir de guia a esta campanha.

Pois sobre mim derramei a última das mais firmes vontades,

a de chegar a ti, Homem ,escorrido do ventre e limpo de pulmões,

a quem se quedaram promessas de eternidade.

17 de julho de 2011

FANTASMAS


(AL BERTO  "Horto de Incêncio" - 3.ª edição - Dezembro de 2000. Fotografia da capa: Paulo Nozolino - Editora Assíro & Alvim)



Fantasmas… os da memória, ou, talvez os do coração, nunca os da razão. Fantasmas… recordo-me de que sempre amei a escrita, sem ela esfuma-se qualquer essência do que sou, e no entanto, nos meus fantasmas aparecem personagens que sempre disseram, “não o caminho não pode ser por aí, a arte das palavras é para os Grandes, e tu não serás um deles.” É curioso que se aniquilem os sonhos dos outros com base na própria imagem do fracasso e do medo, é curioso que de todas as heranças que se queiram transmitir, se prefira deixar os fantasmas, a um abraço forte…


Divago… nada disto tem a ver com o poema de Al Berto, nem com a escrita dele, mas só o tema deste poema faz-me voar, quem sabe em voo de espanto dos fantasmas…


O meu contacto com Al Berto, aconteceu por mero acaso, num banco da faculdade no último ano do curso de direito, onde um colega trazia debaixo do braço o Medo de Al Berto, para defender a sua nota de filosofia do direito. Pensei: “É louco! O que é que este livro tem a ver com a filosofia do direito?”. Mas - e há sempre um mas – a vida é dos loucos, dos verdadeiramente loucos que dissecam até às entranhas aquilo em que acreditam.


E em comunhão com os meus fantasmas aqui fica Al Berto, e o que ele espera não são fantasmas e encontra-se transcrito nas suas próprias palavras no final do poema.



fantasmas

bateram à porta – não abriste

estavas a convocar nesse instante a brancura,

dos dados por lançar e o corvo do sr. poe mais

o maléfico negrume dos mares de melville e

os passos em redor do andarilho etíope e

as mulheres da patagónia que estão sentadas

ao fim da tarde

à beira de insondáveis glaciares


seguias absorto o percurso daquele que comprava

revistas tabaco souvenirs e via os comboios

sumirem-se na gare de Munique – mais a rua onde

te encontro e te perco – rapaz

a quem se esqueceram de dizer que tinha um corpo

de papel bom para amachucar com os dentes


é verdade – bateram à porta

mas não podias abrir

nesta casa só sobrevive a memória turva

dos poemas amados - mais ninguém mais nada

além da parede de lodo e da caixa de sapatos

cheia de sílabas preciosas – e de uma mesa pequena

com um albatroz empalhado para te vigiar a alma


a um canto da sala o cigarro continua a arder

na ponta dos dedos do teu retrato escondido

atrás do sofá – virado para a parede

como tu

coberto de bolor de sustos e de aborrecimento

“Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório («Horto de Incêndio»). A eternidade não é lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque.” – Al Berto

13 de junho de 2011

ESCOLHER PARA DISFRUTAR

(Imagem retirada aqui)


As escolhas são um dos calcanhares de Aquíles do Homem. Numa panóplia de "ses" é sempre dificíl seguir um caminho, especialmente, quando todos se querem e nenhum se alcança e isto porque, fieis á nossa condição, nos sentamos no meio da praça em profunda espera meditativa do... nada.

Saint-Exupéry é um daqueles homens raros, de espinha dorsal bem contruída, deixou aos homens mais rotas do que as que ele próprio percorreu enquanto piloto.

A Cidadela é um livro extrordinário, simples e contudo vasto na sua humanidade meditativa e acima de tudo vivencidada, aqui fica um trecho:

"A angústia invade quer o inquieto, exclusivamente deslumbrado por aquilo que arde com uma luz vaga, quer o poeta cheio de amor pelos poemas que nunca escreveu o seu, quer a mulher apaixonada pelo amor, mas incapaz de devir por não saber escolher. Eles bem sabem que eu os curaria da angústia se lhes permitisse esse dom que exige sacrifícios e escolha e esquecimento do universo. Porque determinada flor é, em primeiro lugar, uma renúncia a todas as outras flores. E, no entanto, só com esta condição é bela. É o que acontece com o objecto da troca. E o insensato, que vem censurar a esta velha o seu bordado, sob o pretexto de que ela poderia ter tecido outra coisa, demonstra com isso que prefere o nada à criação."

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"  - o texto supra foi retirado do Citador

4 de junho de 2011

QUE SABEMOS NÓS? NADA.



(Imagem fotografada e trabalhada pela gestora do blogue.)


Fernando Pessoa é um Universo com Universos dentro. Homem da razão a quem o sentido ecoa como um problema metafísico.

Para todo o resto, ficam as suas palavras sempre auto-suficientes e sem necessidade de tradução.

Os excertos que se transcrevem foram retirados daqui.


Que sabemos nós? Nada. O mistério cerca nos e penetra nos. A religião com suas infantilidades, a metafísica idealista com os seus delírios são ainda assim superiores ao materialismo porque nelas há a intuição do mistério que o materialismo não tem. Esta falta estigmatiza o de falso.

*

De todas as nossas faculdades a razão é a mais alta, porque é a única que a si é suficiente (self sufficient) .

*

Há quem queira dizer: o problema: o homem é imortal resolve se por ter sido lembrado: é falso.

*

Os Postulados do Racionalismo.

Existência de Deus.

1. Há um mistério.

Outra busca metafísica: que relação tem esse mistério com o mundo [?]

2. O mundo que vemos não mostra essa verdade: manifesta o mistério silentemente. Como diz Pascal: «La nature ne montre pas Dieu; elle le cache.» Não; a natureza mostra e esconde o mistério.

s.d.

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).





3 de junho de 2011

OLHAR

(Imagem tirada daqui)


O assombro! Bons deuses! Que fizestes vós Homem dos homens?

A manhã nasce imperturbada dos cunhais da desdita.

Um olhar, um só olhar… fero, profundo, insano e lasso.

Um tom cinza como as escarpas da desordem…

Dois em um de nós são só carne, ossos e solidão.


25 de maio de 2011

PEDIU-ME

(GOYA)


Pediu-me… para lá dos olhos vazios e dos gestos aniquilados - escreve um poema. Disse-lhe que não, que a inspiração era medusa traiçoeira e que um homem, não é poeta em todas as horas.

Com dor, por sobre todas as maleitas do seu corpo, levantou-se, encarou-me os olhos, como quem encara a morte de frente e sem medo disse-me – escreve um poema!

Caramba! Hoje não! Talvez amanhã, porque as palavras não jorram despidas e frenéticas em todas as horas!

Prostrou-se ante mim, gemendo, como um servo a seu senhor e disse – escreve um poema.

Dei meia volta e saí… voltei um minuto depois, com a vergonha estampada na cara e cravada na alma, ajoelhei-me a seu lado e entreguei-lhe um poema. Nunca deve um Homem sofrer para receber aquilo a que tem direito!



5 de abril de 2011

TEMPESTADE

(REMBRANDT - TEMPESTADE NO MAR DE GALILEE)


Quebrantam-se os alicerces em sintonia com o eco

das vozes escorridas da devassa humana.

Bons deuses! Esses que se procuram a cada vaga

da insónia desdita da fé dos homens.

O que restará passada a maleita do tempo?

E nu vagueias, receoso da sombra que te veste.

Como se também fosse obra da Tormenta levá-la.

Homem, o lamento não inflama a barca,

nem tão pouco lhe serve de ancoradouro

passadas que sejam as volúpias das Fúrias.

Aos deuses, nem o grito mais fero, lhes ressoa

quando, passada a tempestade é pelo lodo

que anseias para enroupar a nudez de Ser.

Com que ficamos depois da tempestade?

Com três vinténs de cacos e a obra por iniciar.

E os deuses? Oh Homem, esses, já têm a obra feita!



27 de janeiro de 2011

SÍMILE



(Imagem retirada daqui)
 
 
Uma gota… a insanidade total de um vítreo férreo quebrado no olhar.

As volúpias zurzem atónicas nos calços do sentido e assim…

Um ponto. A cruzada entre o ceio dos enxames e a gente.

Há sempre espaço nessa máscara titubeante de entrelinhas do passado…

Tal qual vaticínio dos deuses em baloiço de criança.

Desdita metafísica do desalojado de nós.

E no fim, ou, será inicio? O confronto com o chão.