17 de agosto de 2011

O HOMEM NÃO DESEJA A PAZ

(IMAGEM RETIRADA DAQUI)

"Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego colectivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em acção. Da paz se diz que é «podre», porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inactividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de facto é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados." - Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV'


Vergílio Ferreira é essencialmente um escritor pensante, e curiosamente (ou talvez nem por isso) escolheu como principal profissão, a de professor. A sua escrita é dominada pelo tema do Homem, e em termos filosóficos raia o existencialismo, mesmo que na sua vasta obra o negue por diversas vezes. Preocupa-o a razão humana e os seus debates internos, mas essencialmente, é o futuro que lhe demanda a escrita.

Não é a primeira vez que publico textos de Vergílio Ferreira, e não o faço por mero gosto pessoal, faço-o porque no meio das tecnologias, das idas e vindas à Lua e de toda a azáfama do quotidiano, esqueceu-se o pensar. E é preciso escutar de todos os lados, sem olhar a quadrantes, classes, ou estilos. È preciso, igualmente, ter-se a noção de que não somos o futuro. Além de nós existirão (bem queiram os homens e já agora os deuses) centenas, senão, milhares de gerações e essas sim serão o futuro, a nós cabe-nos o hoje, o aqui e o agora, a nós cabe-nos o trabalho de criar o futuro, de passar a herança, e queiram os homens, que ela não se traduza numa mão cheia de nada e noutra cheia de fome. Pobre não é aquele que não tem bens, é aquele que não quer para si a responsabilidade e oportunidade de os criar.

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