17 de março de 2009

ESCREVER


“Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contenção beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.” – Vergílio Ferreira, in "Pensar"



Vergílio Ferreira foi um dos Homens que me tocou na minha juventude primária, fez-me pensar em cada frase que lia, levando-me ao recôndito de mim. Por isso, por ele nutro, um carinho deleitoso, como aquele que nutre o pupilo pelo seu Mestre.


No escrever o Homem revela-se em oração consigo mesmo, desata amarras com habilidade e descobre-se, nesse acto tão singelo ele trespassa a barreira dos outros e encontra-se nu ante a sua verdade.


Verdade que, não tem fim algum a não ser o de aprofundar a essência do que se é.


Nos dias de hoje, em que tudo é mercantilismo, a escrita proporciona a libertação das grilhetas quotidianas do sempre igual, das ideias conjuradas em prol de permanecermos perante o mundo como pares.


Na escrita não existem ilusões ou premissas a seguir, não nos é imposta a condição de colar palavras bonitas, palavras de capricho, não somos forçados a conjurar frases para terem um sentido certo e concreto.


A escrita revela a simplicidade da vida e em consonância o primitivo Homem, fiel aos seus pensamentos, irmão da sua vontade nessa comunhão com as palavras.


Escrever torna-se então, a tradução de uma não ciência, uma não pertença dos grandes, dos sábios ou dos deuses e constitui a transposição para a linha de um novo renascer.

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