16 de setembro de 2010

SÓ POR HOJE


(Vergílio Ferreira - imagem retirada aqui)


Évora, 25 de Fevereiro


   Mais um conto - «A Palavra Mágica». Mas com que dificuldade! Todavia consegui desabafar desta saturação de palavras com que os jornais, a rádio, as conversas envenenam o ar. Cansado, caramba! Sobretudo cansado de querer acreditar. A cada canto, um sistema perfeito de vocábulos. Ao princípio era o Verbo e o Verbo se fez terrorismo. Não me falem em Razão. Falem-me em crenças, em mitos, em paixões. Mas ninguém tem essa coragem. Pegam numa pedra e lapidam-na de geometria. Depois fala-se na geometria, no rigor das linhas, na fatalidade da exactidão. Só não falam na pedra, bons deuses! Na pedra, que é a verdade fundamental.

Não me peçam hoje lágrimas para aquele que morreu
e pensou.
Não me aluguem o dó, que não está disponível.
Nem me peçam que no sangue do que só acreditou
e morreu,
eu beba aquela coragem que sinceramente não tenho.
Fé por fé basta-me esta de acreditar hoje, só hoje,
que afinal não vale a pena.
Amanhã talvez esqueça
ou perdoe.
Mas por hoje, céus, emprestai-me
essas tubas dos arcanjos do fim do mundo,
ou a trombeta castelhana d'Os Lusiadas,
ou qualquer coisa que berre.
Não tenho ideias a dizer
nem sonhos, nem ódios nem promessas.
Tenho só um grito, mas um grito longo,
horrendo, fero, ingente e temeroso
que me diz todo
por hoje,
só por hoje.


In Diário Inédito, obra do Espólio de Vergilio Ferreira, Editora Quetzal


Hoje e só por hoje, estas palavras, este Homem e este som, fazem-me eco nos sentidos, na alma e na razão.

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