“Como é que o homem vai viver sem uma significação para a vida? Donde essa significação? Os sucedâneos dos deuses atropelam-se tumultuosos, mas duram menos que os deuses, duram menos que um homem. Imaginei um dia que o homem viria a aceitar a sua condição em plenitude. Só não imagino esse homem. Porque imaginando-o como me é possível, penso que admitirá uma transcendência inominável, uma dimensão que supere o imediato da vida. Só que o pensá-lo não me afecta o sentir. Tenho o enigma mas não a chave que o desvende. Sei a interrogação, mas não posso convertê-la na pergunta a que se dá uma resposta. Da integração do homem no mistério do universo o que me fica é a vertigem. Mas aguento-me aí sem me retirar do abismo nem cair nele. O curioso é que são os «racionalistas» quem menos se perturba com a sem-razão de tudo isto. Porque eles é que deviam saber, mais do que os outros, o porquê e o para quê. Não querem. O mundo existe-lhes assim mesmo, sem significação. Para mim me existe também. Mas isso aturde-me. A velhice que se anuncia, anuncia-me a aceitação e a serenidade. Mas não me anuncia a liquidação do problema. Respiro mais calmo diante do irritante mistério. Mas estar calmo não é anular o que me intriga, ou o seu terror: é só anular-lhe o efeito sobre nós. Os imbecis ou os inocentes é que os ignoram. A expressão final do homem de hoje é o heroísmo. Porque tudo tende a esmagá-lo de todo o lado. Mas ser herói é ser consciente. E aguentar, com um mínimo de pulsações por minuto. Referi-me um dia a um indivíduo condenado à guilhotina e a quem um amigo dizia: «fatiga o teu medo». Não fatiguei ainda a minha inquietação. Mas fatigá-la é só o que tenho para a anular.” - Vergílio Ferreira in Contra-Corrente 2, Editora Bertrand.
Sou uma mulher cheia de sorte e de fortuna. E sou-o não pelos bens materiais que possa ter, ou, por rasgos heróicos em dias de infortúnio. Não sou afeita a desenlaces romanescos. A sorte que me acompanha é toda ela feita de pequenos nadas, a fortuna que possuo, foi toda ela adquirida ao longo dos anos que a vida me tem proporcionado e das experiências adquiridas ao tactear este imenso mundo do qual sou apenas um pequeno grão de areia.
A minha sorte reside nas pessoas, no ser humano, no ser emotivo, no ser racional, na diferença de cada um nós, na unidade de todos, na companhia e na partilha e essa é, enfim, toda a minha imensa fortuna.
Há um antigo ditado chinês que diz qualquer coisa assim: todo o discípulo precisa de um mestre e todo o mestre precisa de um discípulo, nenhum precisa procurar o outro, quando tiverem de ser mestre e discípulo, eles encontrar-se-ão.
Sempre fui muito irrequieta, de “se”e “porquê” na ponta da língua, como se o mundo fosse não uma, mas inúmeras montanhas de hipóteses. Cedo descobri que sozinha, não chegaria a lado nenhum, precisava então de um Mestre.
Mas o Mestre tardava em chegar, aquele Mestre que me ajudaria a desenlear o nó dos pensamentos e das dúvidas que me assombravam o espírito. Desesperava pelo encontro com o meu Mestre. Só mais tarde descobri, com o mesmo assombro com que Arquimedes gritou “Eureka, Eureka”, que a vida nos proporciona não um, mas muitos Mestres.
E um dos meus Mestres foi, sem dúvida, Vergílio Ferreira. Quis o acaso que nos encontrássemos aos meus 17 anos, por imposição do programa escolar, que me forçava a ler a Aparição, corria o ano de 1996. Depressa me apaixonei pela escrita coerente, escorreita, assertiva e inquietante deste Homem, era enfim um caminho, onde eu encontrava tantas inquietações parecidas com as minhas, tantas perguntas e um pensar de mundo. Quis também o acaso que fosse nesse ano que o homem se quedasse por imposição do corpo que o adornou, mas não foi o acaso, que o fez ser imortal.
Vergílio Ferreira mostrou-me a liberdade honesta, sem necessidade de enfeites, de capas de herói, ou, de máscaras para o teatro da vida. Proporcionou-me discernimento entre o entorpecimento da mente e o espraiar do ser e, ensinou-me que a escolha é em última rácio, mais que a medida, o património de um Homem.
Também eu Mestre, ainda não fatiguei a minha inquietação.
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